Uma resenha de Léo Tavares sobre “como tratar paisagens feridas”, de Rafael Amorim
Léo Tavares é escritor e artista visual, vive e trabalha no Distrito Federal. Doutor em Artes Visuais pela Universidade de Brasília, pesquisa a relação entre a palavra e a imagem. Autor dos livros de contos O Congresso da Melancolia (Urutau, 2021), Ruibarbo do deserto (Patuá, 2019) e Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer (Modelo de Nuvem, 2014), prêmio Contista Estreante, pela FestiPoa Literária, de Porto Alegre.
Rafael Amorim é escritor e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Graduado em Artes Visuais/Escultura pela UFRJ. Foi premiado pelo 45º Salão de Arte de Ribeirão Preto – Museu de Arte de Ribeirão Preto – MARP, SP. Venceu o Prêmio Rio de Literatura, na categoria Novo Autor Fluminense, com seu livro de estreia, como tratar paisagens feridas (Garamond, 2020).
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Habitar tudo o que foge: os percursos íntimos em como tratar paisagens feridas, de Rafael Amorim
A contemplação da paisagem, essa coisa inventada pelos artistas. Palavra que vem do latim pagus, a paisagem carrega etimologicamente esse afeto de um lugar de origem, vinculada em acepção primária àquilo que está ao nosso redor, o nosso entorno. Em El Paisaje: génesis de un concepto, o autor espanhol Javier Maderuelo lembra, no entanto, que “paisagem não é um mero lugar físico, e sim o conjunto de uma série de ideias, sensações e sentimentos que elaboramos a partir do lugar e seus elementos constituintes”. Que a paisagem depende sempre de interpretação, que faz parte de uma busca em que a sensibilidade toma partido não nos parece tanto imediato quanto se torna evidente quando nos demoramos sobre o que vemos, em busca de sentido: “a ideia de paisagem não se encontra tanto no objeto que se contempla como na mirada de quem contempla. Não é o que está a sua frente e sim o que se vê.”
Vi muitas variações de uma mesma paisagem, ou paisagens similares, fragmentos de um mesmo mundo, neste livro de estreia de Rafael Amorim, “como tratar paisagens feridas”. Talvez venha a calhar o olhar de um artista visual para a construção dessa espécie textual caleidoscópica, estudo de ângulos. Escrituras ao redor de um mesmo fenômeno: coisas que se movem incessantemente, seja em velocidade de fuga, desarvorada, seja na lentidão geológica e astronômica. Eu me vi, refletido em tantas dessas cenas de percalços intimistas, especialmente quando as situações descritas são completamente abaladas – e para sempre alteradas – pelos elementos externos: são invasões poéticas que vêm do mínimo e do grandioso, da cidade e da natureza, para conquistar, ou colonizar os espíritos, de uma melancolia que se torna marca, que é modo de ver. Nas páginas de “como tratar paisagens feridas”, li meu eu de anos atrás, em meus vinte e poucos anos. Imagens transfixadas pelas minhas próprias, nelas se deixando entrever meus trejeitos de transitar pelos meus próprios lugares. Percepções e estados de espírito reverberados. A despeito das similaridades do nosso ser/estar no mundo – ambos somos criadores lgbti+ em ponte aérea entre as artes visuais e a literatura – penso que muitos leitores irão se encontrar como possíveis habitantes desse livro, e esse é um efeito poderoso, quando a escrita nos alcança e acolhe no reconhecível.
É um livro sobre uma cidade, o Rio de Janeiro, alguém poderia dizer. Mas creio que as paisagens feridas do título dizem respeito a esse pago mais interior, de horizontes ampliados e de transmutações. São paisagens feridas porque não se fixam, desfiguram-se quando queremos fotografá-las, enevoam-se quando buscamos algum caminho seguro. Quem perambula por elas parece ciente da transição inevitável das coisas. A nostalgia do que muda e a expectativa do que está adiante são duas margens do livro, ainda que esta expectativa não seja bem esperança. A voz narrativa em todos os textos está marcada em seu próprio tempo, os anos pós-golpe de 16, e há um sentimento de impotência e inquietude que distingue esse registro. É um tempo específico de perdas políticas, culturais, humanas, contexto que afeta a percepção do futuro e que dispersa o corpo-presente, este que se move pelas ruas, pelos ônibus lotados das manhãs e das noites, que se encontra e se perde como testemunha das vivências dos outros, como testemunha da própria comunhão com estranhos (ou tentativas de), pelas promessas tantas do estar no mundo. Sobre o que resta das perdas, os estilhaços que vão nos compondo.
É um livro que me pareceu colorido por algum azul da solidão das madrugadas, madrugadas em que os barulhos do dia ainda vociferam, inclementes. Mas nem tudo é ressaca e contabilidade de danos. Há nesse livro rasgos fortuitos de luminosidade, em uma comutação de sombras e luz. Essa escrita vem de um olhar que encontra no meio da cidade a magia pequena, vinda dos recantos naturais que tentam se acomodar entre o concreto, mas apanhada também do caos urbano; são observações em rotação íntima, aquelas que fazem com que algo nos perpasse ou nos golpeie em nosso deslocamento incessante: “não há liquens vermelhos na copa das árvores nesse lugar onde o vento faz a curva”; “o farol do ônibus vai iluminando os contornos do que parece ser o caminho para uma nova cicatriz”; “e aportamos os nossos navios ao meio-fio, nos bairros com o maior índice de pombos atropelados”. Perambulando pelas ruas estranhamente familiares de Amorim e atravessando suas chuvas e seus crepúsculos, nos deparamos com inúmeros achados de beleza, dessas que fazem lentificar o passo. Iniciamos o trajeto com poemas e com um poema ele é encerrado; a forma do meio, no entanto, é a prosa, que tem, às vezes, a feição da missiva. Eu respondi a elas do meu jeito, aqui e ali: fechando o livro, para depois de segundos retomá-lo, querendo recuperar em mim a meada inominável que a leitura tinha lançado. Algo parecido com o respirar fundo diante da primeira luz que chega depois da chuva.
PS: Fechando um círculo de volta à origem da paisagem: as palavras pagus (província, região) e pagão (herege, sacrílego) vêm, ambas, do verbo pango: fixar, tornar firme, unir, que é também: fincar na terra, plantar.