Uma resenha de Léo Tavares sobre “Florim”, de Ruth Ducaso
Léo Tavares é escritor e artista visual, vive e trabalha no Distrito Federal. Doutor em Artes Visuais pela Universidade de Brasília, pesquisa a relação entre a palavra e a imagem. Autor dos livros de contos O Congresso da Melancolia (Urutau, 2021), Ruibarbo do deserto (Patuá, 2019) e Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer (Modelo de Nuvem, 2014), prêmio Contista Estreante, pela FestiPoa Literária, de Porto Alegre.
Luciany Aparecida é escritora e professora de Teoria e Crítica literária, leitura e produção de texto. Doutora em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, pesquisa nação, imigração, história, memória, identidades e performances. Publicou os livros Florim (paraLeLo13s, 2021), Auto-retrato (Pantim, 2019), Contos Ordinários de Melancolia (paraLeLo13s, 2017) e Ezequiel – poesia-lamentações, suspiros e ais (Pantim, 2018).
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Agonia e Êxtase em Florim, de Ruth Ducaso
A relação entre forma e conteúdo na arte é assunto fundamental para a teoria, mas é no fenômeno poético, no experimento, na escritura, na fixação das forças subjetivas em materialidade, que essa relação revela o vibrar de linhas demarcatórias, quando estas se afrouxam, se distendem, até mesmo se diluem (em raras ocasiões, como neste Florim, de Ruth Ducaso).
Antes de me arriscar no território de Florim: Ruth Ducaso é uma das três assinaturas estéticas da escritora Luciany Aparecida. Sob a já falecida persona Margô Paraíso, irmã gêmea de Ruth Ducaso, Luciany publicou poesia (Ezequiel, PANTIM, 2018). Poeta suicida, Margô Paraíso “sempre teve 47 anos”, e carrega a marca do desespero de existir, até o fim movida por uma promessa de alívio. Antônio Peixôtro, talvez a mais enigmática das três figuras, é artista visual, já passou dos 70 anos, vive recluso no sertão e produz desenhos formalmente simples, acompanhados de pequenos textos (Auto-retrato, Pantim, 2019). Luciany Aparecida o descreve como feliz, “um peixe-outro”.
Ruth Ducaso, por sua vez, a terceira das personas, essa que é movida por ventos mais intensos, comprometida com a voragem, estreou com Contos Ordinários de Melancolia (Paralelo13s, 2019), livro de fluxos violentos e mutantes entre o lírico e o grotesco, entre a miniatura e o monumento, com histórias de mulheres vorazmente se insurgindo contra a indignidade, nem sempre sob um registro linear e logicizado, no sentido de tradução tradicional do real. Só que Ruth Ducaso não trabalha o nonsense: o real em seus livros é mostrado em ultrapassagem, isto que Bachelard chamou de “ultrapassagem do real” ao falar sobre a imaginação na poesia. É, portanto, possível uma aproximação entre essa prosa e a poesia, especialmente porque a prosa aqui se transfigura e extravasa o compromisso com a narração, com o relato, a ponto de utilizar a descrição para provocar vertigem, manifestação de imagens selvagens, vindas de uma escrita que constrói um mundo, em vez de se satisfazer em espelhá-lo.
Mudam-se os tempos, mudam-se as manifestações artísticas, os modos de ver e ler. Mas o espírito do agora é sempre o mais vacilante. Ducaso sabe que essa figura do tempo presente prossegue trêmula de encontro com sua forma (ainda gestando). Não raro, os tempos atuais só nos dão a dimensão exata de seu assombro quando já é tarde demais. No entanto, o cerne do agora, a ferida exposta, foi aberta antes. Essa apreensão do hoje é um problema perene para os artistas. Nem todos os criadores de trabalhos estéticos, teoricamente receptores sensíveis dos aspectos do próprio tempo, são capazes de captar nesse cerne a pulsação do que nos é contemporâneo. O porvir é algo acometido pelas perturbações do que já foi, não como resquícios esmorecidos, mas como fagulhas ameaçando reacender um fogo, presentificações vibráteis. Nesse sentido, a relação entre forma e conteúdo é primordial: enquanto se captura algo na forma, o conteúdo é movediço e tem como premissa a fuga, o escape. O que se retém?
Em Florim, segundo livro de Ruth Ducaso e sua primeira novela, há um livro de teoria escondido, tratado sobre a relação entre forma e conteúdo. Não é nessa exata conjunção (forma e conteúdo) que se depositam as aflições criativas, as dúvidas, as tentativas, as tomadas de decisão? Aspira-se à síntese entre tempos opostos, sente-se que só se pode entender o presente assim, espectro composto de restos e de germinações. Coisa utópica, a intenção do artista. E oximorosa, porque, entre gesto e intenção de gesto existe o quê? Falo dessa figura, o oximoro, porque ela conjuga os contrários, ela é a língua da utopia, e por chamar uma coisa de utópica e ao mesmo tempo mostrá-la acontecendo que a arte é a definição do oximoro. Ou o oximoro é a definição da arte.
Meta de aproximação. E alguns artistas catalisam nesse ponto ínfimo e volátil do entre uma implosão sem-nome, que é, mais ou menos: a forma do novo, o conteúdo do novo. Indissociáveis, feto híbrido. Por “novo” não quero dizer “original”, na pretensão de não evocar um fantasma do que a teoria já taxonomizou como extinto. É que se o escorregadio espírito do tempo for pego desprevenido, entre uma e outra insinuação de presença, e uma artista estiver de olhos bem abertos, teremos trabalhos estéticos como Florim.
Em sua primeira novela, Ruth Ducaso tem como ponto de partida o real em seus aspectos mais urgentes, que são os aspectos frequentemente negligenciados pelas nossas leituras de mundo, tão afetadas por regimes de exclusão e violação a coletividades, mas também a corpos e subjetividades. Em Florim, o real me parece algo pego pelas rebarbas, pelas cortantes bordas; é um real que precisa ser chacoalhado para que, destes espasmos se revelem imagens e formas renegadas. Como narradora, Ducaso quer, mais do que contar uma história, forçar passagem à consciência, pelos estilhaços, oferecendo ao leitor um trabalho de recomposição. Isto é marca de autores que trazem o leitor para o centro da formação de um trabalho, e estas são leituras que provocam (sem jamais impor), no ativar de uma postura estética, algum vibrar de uma compreensão ética. Para tanto, guiada por Luciany Aparecida, mas com a autonomia de uma voz singular, Ducaso se volta para trazer à forma o essencial do conteúdo. Este é o trabalho da conjunção: forma e conteúdo se interpenetram, um se fixa sobre o outro e Ducaso nos mostra que a liberdade radical que tantas vezes é chamada de experimentalismo é a única via para reclamar o não dito ou aquilo que não tem sido dito o bastante.
Em Florim, Ducaso sugere soltar um laço, desfazer um pacto com a convenção: a linguagem é quem narra, a certo ponto do livro. Não nos revoltamos o suficiente, agora é a Linguagem quem está em revolta: ela precisa manifestar em plena convulsão uma gênese, um contragolpe à vida que a mata, à vida que a renega. Ruth Ducaso se insinua nessa proclamação da Linguagem. Na reinvenção, oferece aqui e ali a inteligibilidade, não para sanar a nossa ânsia pelo arrefecimento da vertigem, pois Ducaso é escritora sem concessões: apenas para que possamos retomar fôlego para tomarmos ciência de que essa leitura é também convite ao confronto com as nossas próprias fundações, as nossas próprias verdades, mas também à cocriação, desempenhando nosso papel de leitores-ativos.
São várias as camadas de acesso à história, túneis de passagem sucessiva e obrigatória. Luciany criou Ruth Ducaso, uma autora com personalidade própria e biografia. Ruth Ducaso criou Dita, a protagonista de Florim. Dita quer ser escritora; deseja, também, manifestar o poder da criação de mundos. Mas, o poder passa pelo direito, e o direito da inventividade, o direito da expressão, o direito da eloquência – direito à própria poesia – são coisas que lhe são negadas. Em um mundo em que tanto é garantido para uns, como atribuição de merecimento e herança de berço, sexo e cor, e que a outros faz, mais do que operar a lógica da casta, incutir em si mesmos a crença da desvalia, as personagens de Florim são trazidas ostensivamente como corpos em que habitam desejos marcando identidades – habitam e se revolvem. A identidade de Dita depende da possibilidade de ser poeta, o que lhe é vetado. Há duas prisões no livro, a prisão física em que Dita é atirada e onde lhe é imposto um estado de quase animalidade, e o mundo de fora, onde seu desejo e seu corpo são marcados por outras violências. Aí, o oximoro: o corpo de Dita é cárcere e imensidão sem fronteira, é no seu interior que a poesia insiste e que busca materialidade. Mas se o físico precisa de autorização para ser, a imensidão do íntimo não pode nem mesmo ser potência. Não pode existir nada mais violento. E mais real.
Os espectros do agora, em Florim, vêm como coro, remetem em forma à voz coletiva do teatro grego, mas são vozes que vêm de outras pontas do Atlântico. São o séquito de Iansã, aquela que Dita evoca, reverbera e de quem é personificação. O florim, conhecido como antiga moeda de ouro (usada na compra de escravizados) é também o nome do espadim que Iansã empunha para arregimentar os ventos. É desafio contra o tempo, é capacidade de conjurar a ancestralidade e de, no mesmo golpe, puxar para o agora o porvir que precisa ser. Espírito do tempo: peixe-outro. Um real que no amanhã traga os espectros do ontem como emblemas de resistência. O amanhã, afinal, está prestes a ser hoje. Sob que forma? Isto só passa pela linguagem e no momento a linguagem precisa estar em convulsão. Luciany Aparecida apanhou esse ar, por muitos considerado extemporâneo, com o seu Florim.