Uma resenha de Lucinda Nogueira Persona
“Laurus, Linguagem da Memória” é um resenha de Lucinda Nogueira Persona sobre o romance Laurus (2019) de Clarissa Loureiro.
Lucinda Nogueira Persona nasceu em Arapongas, Paraná. É formada em Biologia pela UFMT e mestre em Histologia e Embriologia pela UFRJ. Professora aposentada pela Universidade Federal de Mato Grosso. Já publicou os livros de poesia Por imenso gosto (1995) – Prêmio especial no Concurso Cecília Meireles (1997) da UBE; Ser cotidiano (1998); Sopa escaldante (2001) – Prêmio Cecília Meireles (2002) da UBE; Leito de acaso (2004); Tempo comum (2009); Entre uma noite e outra (2014) e O passo do instante (2019). É autora de contos e crônicas, colabora com jornais e revistas mato-grossenses. Integra antologias de poesia e contos. Ocupa a Cadeira n. 4 da Academia Mato-grossense de Letras.
Clarissa Loureiro nasceu em Campina Grande. Tem mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atuando como professora de Literatura na UPE em Petrolina. É autora de Mau Hábito (contos, 2010), Invertidos (contos, 2012) e Laurus (romance, 2019).
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Laurus, Linguagem da Memória
Um dos poemas de Fernando Pessoa, no “Guardador de rebanhos”, traz um verso de certeira e espantosa profundidade que diz: “lembrar é não ver”, caracterizando-se aí a dinâmica própria da memória – complexa, elétrica, dançarina.
Na verdade, cultivamos lembranças. Elas são comuns a todas as mentes de todos os tempos, um sem número de cenas, imagens, trechos de vida, falas e sensações em todos os sentidos. É comum, nessa trama secreta, existirem diversos episódios instigantes, exigindo resgate esclarecedor ou significados possíveis. São esses mesmos episódios que, interligados de modo complexo no corpo familiar, delineiam a ação, fazendo com que um ou outro membro inicie a busca, a enumeração dos parentes e das suas histórias no âmago do passado. Assim, o fascínio e o diálogo com essa imponderável dimensão não acabam nunca, desaguando em muitos casos na literatura.
É isso o que acontece e reverbera no romance Laurus, de Clarissa Loureiro (Recife: Ed. do autor, 2019), professora de Literatura na UFPE em Petrolina e Doutora em Teoria da Literatura.
Laurus transcorre no contexto do Brasil agreste, revelando-se como uma resposta afetiva e literária à memória familiar que surge com força mítica para expressar a inatingível e pretérita realidade. Do breve título, com toda sua carga semântica, passamos pela epígrafe, um poema de Mario Quintana, atuando como forte sinalizador do devir, indicando a fina sensibilidade e riqueza íntima da romancista. A epígrafe de Quintana instaura também o clima especial de resgate do universo em cujo seio se forjaram os familiares e seus destinos.
Seguindo ainda algumas páginas, marcadas (e marcantes) pelas dedicatórias, prefácio e sumário, alcançamos o primeiro capítulo “Os caminhos para a Casa Grande”, ali nos primeiros termos, maiúsculos e cativantes, na posição em que se coloca a autora, sob o fulgor da lembrança, movida por um espírito de sonho e fantasia.
A propósito, dentre os ingredientes estruturais de um romance, um dos aspectos a chamar a atenção é justamente o ponto de vista, a posição do escritor em relação à história contada. E Clarissa Loureiro, em sua luminosidade, para atingir seu propósito, cria e assume em Laurus uma posição quimérica. A jovem narradora, na força da evocação, emerge como Tirésias, um ser mitológico, andrógino, diáfano em seu voo, embora lhe pesem as asas, conforme avisa no início da viagem-sonho. Tirésias, em sua racionalidade imaginativa, deseja transportar-se no tempo e espaço para tocar o destino dos ascendentes Loureiro, penetrar na intimidade de suas almas e remexer verdades necessárias.
Esse retorno é em parte favorecido, porquanto o tempo não seja o mesmo, o lugar está lá quase intocado, a Casa Grande de Jenipapo, os currais, o rio, as vozes e costumes aos poucos acordando “num alvorecer suplicado pelos ancestrais Loureiro”. Dos desdobramentos da narração, surgem muitos rostos que choram e sorriem, rostos que “delicadamente se dissolvem no ar”, como no caso da avó Dinha, em determinado momento, enquanto Tirésias se dirige ao passado, “certa de que viver é aprender a se despedir”.
De fato, o outrora é uma dimensão fisicamente intransitável, não se dá um passeio no ontem, não há estratégia humana capaz de materialmente trazer o passado, mas, são assombrosas as forças do sonho, lançando-nos aos terrenos invisíveis de tempos vividos. Quando Cecília Meireles, no poema “Cenário”, do Romanceiro da Inconfidência, anunciou: “o passado não abre a sua porta / e não pode entender a nossa pena”, soube, intensamente, reforçar essa impenetrável dimensão para o corpo físico, porém não o espiritual. E quando prossegue com o verso: “Mas, nos campos sem fim que o sonho corta”… isso basta para que fique claro o veículo para a viagem fabulosa.
Tal é a viagem empreendida por Tirésias em Laurus, conduzindo-se pelos fios da memória, num relato perto da realidade, ordenado, organizado e estruturado pela razão, pelas vivências anteriores e pela fantasia, numa vertente marcada pela intuição e pela imaginação. Escrito com afeto, com as lembranças, com os segredos e com a solidão. A história familiar rastreada em suas vicissitudes e esplendores, desesperos e alegrias, erros e acertos.
Vale enfatizar, o jogo narrativo decorre do ardil demiúrgico da narradora, de se transportar ao contexto ancestral como um ente mitológico que busca o passado adormecido, suas verdades e evidências, recuperando questões toldadas pelo tempo, pelas mortes ou pela versão dos descendentes. E, quase à semelhança do que acontece com Tirésias, os ancestrais (sem a inteireza absoluta de seu realismo) ressurgem nas peles míticas de Gaia, Urano, Hermes, Zeus, Deméter, entre outros.
Em Laurus, ação, espaço, tempo, personagens e linguagem, compõem uma particular orquestra com magistral regência e cujos acordes se espalham pela paisagem fluvial e oceânica da Paraíba, “entre o mar e o açude” e pelas noites e dias de Campina Grande, num compasso concordante com toda uma engenhosidade que só ocorre no ar livre da memória.
De fato, o desassossego pelas coisas permanecidas e a escuta de vozes antigas despertam na romancista a necessidade do retorno. Com isso (no grau crescente de fusão autor/narrador/personagem), desamarra-se do presente e alça voo ao encontro do passado, mesclando-se ao conteúdo humano que o caracterizou. Nessa viagem, espécie de ação purificadora, tem a condição de, ao escrever, dissolver as diferenças/desavenças, aplacar intranquilidades e, por fim, realizar o encontro do ser com o seu sentido.