Uma resenha de Mariana Belize
Mariana Belize é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras Vernáculas da UFRJ e estuda os romances de Ronaldo Lima Lins. Formada em Letras – Língua Portuguesa/ Literaturas – da UFRRJ, campus Nova Iguaçu. Escreve o Projeto Literário Olho de Belize, site de resenhas críticas com base nos seus estudos de Filosofia e Teoria Literária, com ênfase na Estética da Recepção e estudos sobre a relação entre arte e vida, narrativa e experiência.
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Canção de uma dama na sombra: “O indizível sentido do amor”, de Rosângela Viera Rocha
Romance é uma palavra curiosa do panteão da língua brasileira. Significa o gênero literário, mas também a relação íntima de afeto entre duas pessoas. Como fazer então pra não ser confundido? Trocaram por prosa, o que dá ainda mais uma camada à significação, como não queriam os que reclamavam de romance. Prosa lembra o ato de prosear, aquela conversa boa que se esparrama no cotidiano, nascida dele, inclusive. Prosa foi o que ficou a fim de ser diferenciada também da Poesia, que insistem chamar de Lírica. As duas são palavras bonitas. Lírica sempre me lembra música. Poesia me lembra, bem… Poesia.
Canção de uma dama na sombra
(Paul Celan)
Quando vem a taciturna e poda as tulipas:
Quem sai ganhando?
Quem perde?
Quem aparece na janela?
Quem diz primeiro o nome dela?
É alguém que carrega meus cabelos.
Carrega-os como quem carrega mortos nos braços.
Carrega-os como o céu carregou meus cabelos no ano em que amei.
Carrega-os assim por vaidade.
E ganha.
E não perde.
E não aparece na janela.
E não diz o nome dela.
É alguém que tem meus olhos.
Tem-nos desde quando portas se fecham.
Carrega-os no dedo, como anéis.
Carrega-os como cacos de desejo e safira:
era já meu irmão no outono;
conta já os dias e noites.
E ganha.
E não perde.
E não aparece na janela.
E diz por último o nome dela.
É alguém que tem o que eu disse.
Carrega-o debaixo do braço como um embrulho.
Carrega-o como o relógio a sua pior hora.
Carrega-o de limiar a limiar, não o joga fora.
E não ganha.
E perde.
E aparece na janela.
E diz primeiro o nome dela.
E é podado com as tulipas.
Mas por que entrei nesse papo, o leitor pode me perguntar com toda razão, eu não ligo. As palavras são importantes, viu? É por isso que inicio esta resenha de O indizível sentido do amor, livro de Rosângela Vieira Rocha, falando delas. Este romance tem romance. Não, não é água-com-açúcar. Parece mais com a vida, essa mistura danada de fel com mel. Tem amor silencioso, como é o amor no cotidiano. O amor nesse livro nasce do silêncio e é dentro dele que se faz. A narrativa de Rosângela tem essa característica de ser tecida no detalhe, quase um ponto-cruz. Parece simples, mas não é. O amor é que mora nos detalhes.
O livro é de profunda beleza. Surpreendente porque trata de assuntos densos, a narradora é leve como uma pluma, vertiginosa na construção da narrativa. Muitos detalhes e muita pesquisa é que a obra traz ao leitor – não saímos ilesos da leitura. Ainda bem! O cotidiano se multiforma na leitura. Os detalhes do cotidiano. Uma narrativa, não por enredo, o enredo é simples, uma história de amor é simples. Mas é mesmo, cara pálida? O amor é tão simples… Vai nessa.
Amor, como o cotidiano, é construído de pequenas percepções sobre espaço, tempo e sobre o Outro, esse nosso desconhecido – o Amado, o escolhido do nosso amor, é escolhido porquê? Ninguém sabe. Pode ser comum, um ser comum como nós, andando por aí, mas que para aquele que ama… Quanta beleza pode estar num silêncio compartilhado?
Não tenho palavras. Mas busco. Por uma narradora que se torna melhor amiga porque sabe andar na escuridão sem perder os passos. Pega na mão e vai sem lâmpada. Quem é esta mulher que não teme a sombra? Ela ama.
Começaria tudo outra vez
Se preciso fosse, meu amor
A chama no meu peito ainda queima
Saiba
Nada foi em vão
As intertextualidades também são caso de se manter atento porque vem pelo entremeio da trama, entre seus fios. Não que seja uma obra labirintíca, não é. Nem hermética, muito pelo contrário. O caso aqui é que o processo da joia é incorporado na trajetória e construção do romance. Burilamento, leitor, burilamento da palavra, do gesto, da ação. Trajetória da língua pelo que há de mais delicado. As relações entre memória, recordação, lembrança… Cada uma em suas etimologias. Recordar, se você não sabe, é trazer de volta ao coração. O romance de Rosângela é recordação…
Um livro muito emocionante, lágrimas de tudo que é emocional, que é estar vivo, que é chorar pelo que não volta, acompanhar a narradora, suas paixões, seus passos, os perrengues em comum. A construção da narradora transtorna a solidez dos espaços. A letra que tem espírito, a narradora vive em seu amor, o amor vive na letra. A narradora ocupa seu espaço ao lado do leitor. José é enigmático como ler I-Ching, pra mim, na minha limitação. Claro enigma, José. Amor é encantar!
Parecia que o amava com um amor eterno e nada de novo podia acontecer a esse amor. Eu me
havia esquecido da morte.
Marguerite Duras
A narradora arde num afã impressionante pela busca. Ouvimos ecos de Clarice Lispector em suas reflexões como também de romances sobre a ditadura militar, de poemas, de canções, de passagens de horas. Os sonhos são permeados de pesadelos, desatinos. Cansaço, muito cansaço. No início queremos saber quem é José. No final, quando temos sua fotografia escrita pela narradora, ele já nos parece um amigo. Daqueles amigos silenciosos, cheios de significados e que a presença já preenche a sala sem dar uma palavra. José é uma presença. É a presença da História.
Os traços da época, bem como os traçados da narradora, são forças que carregam em seu bojo a construção das narrativas históricas sobre o tempo e o espaço de época. Os que negam a ditadura, os que a denunciam, os seus perpetuadores – todos estamos envolvidos nessa dinâmica que é perversa com aqueles que falam, que é protetora dos que calam e fazem calar as vozes.
Esta resenha é um texto que se une à luta perpetrada pelas vítimas da ditadura militar brasileira de ontem e de hoje, perpetuada às custas de mentiras, trapaças, mortes, genocídio indígena, genocídio de jovens negros, de mulheres, dos considerados loucos, (lembram do Holocausto brasileiro?)… e segue a carcaça, seguem os abutres da História oficial em pleno 2019.
A estrutura do romance carrega em si muitas outras formas e sua base se dá como forma dialógica, seja com o leitor, seja através dos diálogos entre os personagens. A noção de amor que perpassa também a trama e é, de certa forma, seu mote, seu tema e sua encruzilhada.
Amor no perrengue, amor na dificuldade, amor no silêncio, amor na ausência – nosso mundo moderno não concebe esse amor, infelizmente. Bauman fala do amor líquido, quem sou pra discordar. O caso é que a dedicação da narradora por seu amor é que marca profundamente o contato dos leitores com a obra. Assim como a intertextualidade também torna a escrita um alfabeto de arabescos, nada hermético, tudo muito belo, belo e trágico. A narradora divide seu luto, sua luta com o leitor, a lembrança dela através da literatura marca a memória, o corpo, a mente e uma História.
A construção da história que ela narra, as viagens que ela faz entre passado e presente, emociona pela feitura, pelo prazer da estrutura, a inteligência da constituição da memória, do luto, da luta pela verdade, a reconquista do eu por aquele que fica quando o Amor se vai. Fica o espaço jamais preenchido.
A dor.
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu vou te amar
Em cada despedida
Eu vou te amar…
Qualquer coisa que se diga sobre esse livro ainda é muito pouco. Merecia uma tese, muitas teses, muitas páginas, dissertações. Além do trabalho estético, a construção conforme já disse, utilizando a palavra como matéria-prima, a estrutura burilada até brilhar, as dores também estampadas em camadas e camadas e camadas sem clichês nem máscara! Narradora de cristal: brilhante e firme como Rocha.
O trabalho histórico também é preciso, mais do que necessário… Nossos tempos tão sombrios.
Este livro é a obra-prima de Rosângela: nele encontramos todos os temas, as construções mais rítmicas, as ousadias mais apaixonantes, quem tiver olhos de ver vai ver. O indizível que mora no silêncio não foi manchado pela palavra. Não foi riscado o espelho do significado. Não foi fraturada a sombra do momento. Muito pelo contrário.
O silêncio é mestre do dizer. Saturno Direto é o Tempo da Sabedoria. É o Arcano que conhece os movimentos, é lento e assertivo. O espelho que brilha mostra as águas da História. As sombras do momento dissipadas pelo testemunho Daquela Que Muito Ama. Amadora, Amante, Amada. Narradora sagrada em sua Palavra de Vida. Amor sem pieguice. Amor que é jugo leve, fardo suave. O amor na narrativa sem clichês. Os pássaros que ficam juntos constroem seus ninhos em meio às tormentas, Um fala, outro escuta. Um adoece, outro cuida. Um com o outro. Um pelo outro. Os dois pelo Um.
O amor é um grande laço
Um passo pra uma armadilha
Um lobo correndo em círculo
Pra alimentar a matilha
Comparo sua chegada
Com a fuga de uma ilha
Tanto engorda quanto mata
Feito desgosto de filha
De filha
O amor é como um raio
Galopando em desafio
Abre fendas, cobre vales
Revolta as águas dos rios
Quem tentar seguir seu rastro
Se perderá no caminho
Na pureza de um limão
Ou na solidão do espinho
O amor e a agonia
Cerraram fogo no espaço
Brigando horas a fio
O cio vence o cansaço
E o coração de quem ama
Fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando
Que nem o meu nos seus braços
(Djavan – Faltando um pedaço)
Em algum momento do romance, passamos a seguir a narradora na via tortuosa que é um hospital. Entre esses momentos, intercalam-se as lembranças dela com José, que pouco fala no romance, mas seu silêncio é não um símbolo, mas um silenciamento, um processo, um traço de sua constituição histórica, sua subjetividade. Um silêncio pungente de dor e segredo. A narradora ama o silêncio, palavra também complicada porque esconde mais do que mostra. José é também de uma discreta elegância… Uma sedução sem intenção de sedução é mais sedutora.
Pois o mais provável é que a mulher viva mais que o homem – e seja a narradora da vida/morte dele. A mulher é quem escreve a elegia. A mulher é o repositório da memória.
Joyce Carol Oates
Quando o luto toma conta do romance, leitor, leitora, é de se comover, tomamos a comunhão do luto com tamanha intensidade… porque conhecemos José. Seu jeito, sua presença, seu silêncio como também sua música – tomou conta de nós, através das palavras da narradora. Perdemos ele assim como ela, irmanados pela ausência. O capítulo 46 é o mais forte da trama, impossível de não se emocionar.
“Uma funcionária se referiu a José como meu ‘ex-marido’, o que me fez reagir com fúria. Não é e nunca foi meu ex-marido, respondi. Foi meu marido até o último minuto de sua vida, morreu como meu marido.” p.152
O que dizer, para finalizar esta resenha? Leiam o livro. É isso. Leiam esta obra-prima.