Uma resenha de Mariana Belize
Mariana Belize é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras Vernáculas da UFRJ e estuda os romances de Ronaldo Lima Lins. Formada em Letras – Língua Portuguesa/ Literaturas – da UFRRJ, campus Nova Iguaçu. Escreve o Projeto Literário Olho de Belize, site de resenhas críticas com base nos seus estudos de Filosofia e Teoria Literária, com ênfase na Estética da Recepção e estudos sobre a relação entre arte e vida, narrativa e experiência.
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Animais noturnos: A mulher faminta, Tiago Germano
Editora Moinhos
Ano: 2018
Páginas: 228
Autor: Tiago Germano
- Quem é quem?
“Agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro sinal do peso do corpo que sobe. Aqui troco de mão e começo a ordenar o caos.” (Ana C.)
É difícil ter a visão que o verso de Ana Cristina Cesar nos propõe quando nos debruçamos na análise crítica da obra “A mulher faminta”, do escritor Tiago Germano. Tendo já escrito sobre seu livro de crônicas “Demônios domésticos”, publicado em 2017, o que se apresenta para nossa leitura, e posterior crítica, é uma obra intrincadamente sedutora, que nos apresenta cenários vivos, construídos com maestria e, principalmente, personagens estruturados de maneira misteriosa, apenas deixando entrever seus contornos.
Pobre daquele que termina o livro achando que conhece os personagens… Cada vez mais a literatura tem contado com leitores mais humildes, e talvez por isso, eu tenha pensado em começar esta resenha citando Ana Cristina Cesar, poeta carioca que sempre cutucava os leitores desavisados que se achavam no direito de tentar descobrir todas as referências de sua escrita, de seus poemas. Ela avisa, em um de seus textos, “Correspondência completa”, utilizando Gil e Mary como referência a dois tipos de leitores: o que a todo momento tenta descobrir o que levou o escritor a escrever tal e tal coisa, o outro tipo que é o que busca na biografia do autor possíveis referências presentes na obra.
Essas duas questões que Ana Cristina Cesar se preocupa em representar em sua obra estão presentes também na crítica literária em seus contornos basilares: o autor escreve o que vive, ficcionalizando a vida ou a vida nada tem a ver com a obra? Qual a fronteira entre narrador e autor e personagem, alter-ego e autor, pseudônimos, máscaras, entre outros?
Muito já foi dito. Muito já foi discutido.
“No banheiro do apartamento, inspeciona a sola dos pés antes do banho. Há uma bolha do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Ele estoura a bolha e o líquido escorre, um misto de água e de pus. Lascas de pele abrem fendas que sangram quando coloca a sandália. Anda a esmo pelo apartamento. Pensa em entrar no quarto de hóspedes. Chega até a abri-lo, mas se arrepende.” (p.45)
- Tem alguém morto
A morte do narrador, da crítica, do romance, da literatura. A morte do sujeito, do objeto, da gramática. A morte da voz. Tem sempre alguém agonizante nesse quarto. Alguém detectando os mortos. O defunto-autor. O autor-defunto. O que desenterra defuntos, tralhas, aspectos, tempos, personagens, autores, novelas. O que desiste da literatura. E a morte seguindo os que se atrevem a uma dedicação à Literatura. O livro por vir, o livro que veio, o livro que foi, o livro que morreu e agora é tablet, o romance que era folhetim e virou Amazon, as grandes editoras tomadas por dívidas, as livrarias que fecham, as universidades que o fascismo quer fechar, as boas cabeças tomadas pela indiferença dos tempos, pelas dívidas e pelo instinto de sobrevivência a qualquer custo. Depressão e afogamento. Abyssus abyssum invocat…
Quem sabe o que fica? O que fica e ficará? Quem é esse capaz de vislumbrar os meandros do tempo e dizer quem sobreviveu? Quem vive, hoje, não é quem sobre-vive. Mas o que é estar vivo nesses tempos?
A vida, esta vida severina, esta questão turmalina, este mistério insondável cercado de morte por todos os lados. Não é o Tédio mais, com seu huka, a nos controlar através de cordéis. Nem alguma ingenuidade, algum desejo de batalha ou um qualquer coisa ditado pela mídia: ser mais bonitos, mais ricos, mais profundos, mais desejáveis, mais, mais, mais consumidores de coisa alguma.
Continuamente sós. À nossa frente, a tela em branco. A piscina fechada, para Lorna. As folhas em branco, para o autor.
Sós.
- Paranoia delirante
Nesta volta sem fim a que estamos submetidos, e mesmo os que se acham livres estão, na verdade, mais do que atados, inconscientes e submersos neste reflexo falho em que o olho não vê através, mas apenas se encanta com a própria imagem.
Os seres que contemplamos neste livro e, quero deixar vocês cientes de que não falarei de todos os personagens, mas estarei mais inclinada a me demorar em Lorna e seu companheiro, demonstra justamente o interesse em não desvendá-los, mas tentar mostrar os caminhos que a técnica do escritor seguiu para a estrutura e construção dos personagens.
Adivinhá-los é traí-los, observá-los é o exercício de trazer seus raciocínios e decisões incompreensíveis para a resenha crítica, pautando a análise numa tentativa de caminhar por suas perspectivas e não em deciframentos, verdades absolutas, teorias, juízos de valor, entre outros dilemas.
- Lorna
“Estaciona e resolve verificar com os próprios olhos se a moça no ponto de ônibus é mesmo Lorna. Não precisa mais do que virar a rua a pé para comprovar que sim, de fato, é Lorna, com tênis All Star preto, short desbotado curto, blusa preta e a bolsa sempre maior que ela, essa agora roxa e feita de trapos artesanais.”(p. 51)
Lorna é a mulher que busca seu sonho e depois que o realiza percebe que o sonho por si só não era a busca, ou talvez realizar o sonho não era a busca em si. A busca era o sentido, o caminho era o caminhar. Também podemos pensar que Lorna representa o mistério do buscador que conquista o que almeja e depois se ressente, não de ter conquistado, de ter chegado à realização, mas de compreender os cordéis da Indústria que a tudo de criativo que a humanidade cria, ela engole, dissolvendo num todo miserável de cifras e valores insensatos, aos quais o artista, quando verdadeiramente engajado na busca pelo momento numinoso que a criação, a busca, o processo lhe presenteia, se perde em minúcias e relações que sabotam essa perspectiva, transformando a busca por um sentido na Arte como um mero jogo de cartas marcadas.
E poder.
Lorna, afogada como o pai, mas pelas águas do inconsciente. Como a filha de Joyce, que se afogava nas palavras em que o pai nadava à fortes braçadas. Vemos sua presença na narrativa dividida em três atos: como jornalista, como pintora e depois como uma depressão. Lorna é a artista submetida ao sistema, é a arte que se embota no contato com a Indústria Cultural, como bem diria Theodor Adorno. Mas também, pensemos, qual a diferença entre ela e o escritor, já que os dois são artistas e os dois, segundo acompanhamos, estão impelidos à criação?
O escritor está funcionando como engrenagem da indústria cultural, é impossível supor que está fora do contexto do capital. Porém, sua busca na arte é uma espécie de exorcismo, uma construção do processo de esquecimento, de cura, de uma busca por. Lorna não compreende esse processo e as questões que vigoram na escrita dele, ainda que o leia. Na escrita, o processo é in. Na pintura de Lorna, vigorava o out, sua relação com o mundo, mas sem repensar, esclarecer e ouvir o farfalhar das obscuras faces do que a abatia. O luto, o medo e a depressão não eram transtornados por Lorna através da arte. Não eram seu mote. Enquanto que o escritor, encarando seus mortos, seus fantasmas, suas incompreensões, acabaria por sobrepujá-los através de detalhamentos, tessituras e enfiando a mão em abcessos… Daí, ele conseguiria encontrar seu ouro, sua verve: Sua Voz.
Através do processo, o escritor revolve sua morta e aniquila a Morte que o afogaria.
O capitalismo é incompatível com qualquer ética…
Michael Löwy lendo Benjamin
É muito importante para o leitor que pare para pensar nessas questões tão intricadas quando ler “A mulher faminta”. Até que ponto o artista pode trabalhar para a indústria que o promove sem ter sua criatividade, sua energia, sua alma tragada para o fundo dessa roda que gira e, muitíssimas vezes, se alimenta da destruição daqueles que a fazem girar?
Ao leitor especialista, seja ele na arte que for, cabe ressaltar: para qual lado da balança você pende mais?
Lorna, vibrante e criativa à princípio, mas depois sugada para o turbilhão mesquinho que embota sua arte e mata?
Ou el escritor y sus fantasmas?
Cabe a nós, críticos e artistas da palavra ou não, pensar profundamente sobre o processo ao qual está vinculado o que fazemos. Estamos conscientes das malhas que se constroem ao nosso redor? Podemos distinguir o que é nosso e o que não é, ou seja, o que faz parte de nossa sutileza e o que é víbora que alastra o desejo do capitalismo? Apenas pela arte da reflexão, pela leitura atenta daqueles que pensam a macroestrutura, e é imprescindível conhecê-la nesses nossos tempos caóticos em que a verdade e a mentira se confundem como parecendo o mesmo problema.
Podemos ordenar o caos?
Aos artistas, cabe pensar a quem sua arte serve. Não mais a Deus ou à Igreja, como tínhamos Michelangelo e Beethoven, mas se hoje a arte se presta a levar e defender a morte, a tirania, ou se questiona o status quo, trazendo àquele que toma contato com ela uma nova percepção para além dos liames do capital… Também teremos, em contrapartida, os muito-bem-ajustados-ao-sistema…
Hoje, como desde que Sartre já tinha avisado, não cabe mais ao intelectual uma postura blasé em relação ao mundo. Esta figura está fadada, em todos os tempos, ao esquecimento, ao ostracismo, à perpétua solidificação de seu pensamento que, como o tempo, vai passar. Vai morrer.
Mas aquele artista que, tomado pelo alumbramento com o Mundo, consegue a partir de sua criação não apenas deslumbrar, mas também desvelar os verdadeiros mecanismos, intrincados e destruidores que se imiscuem na nossa vida cotidiana e, àquele que o observa, consegue transtornar a tirania internamente, no que há de mais sutil… eu arriscaria dizer, no que há de mais espiritual nessa guerra invisível a que estamos submetidos, este sim, poderia dizer: “combati o bom combate”.
O artista tem o maior peso para carregar nos ombros. Os ombros suportam o mundo. O intelectual crítico é o que observará e acompanhará esses corajosos… Pela sua criação, o artista pode mover o que há de mais importante nas vidas dos seres: suas sensibilidades. Não há como não se atentar para isso, verificando apenas os móveis econômicos, sociais, materiais imbricados no processo de criação do artista. É necessário atentar, apontar, esquadrinhar, e por isso o trabalho do crítico, para as sutilezas, os despercebidos, os insights, as lacunas. É preciso escrever sobre as sensibilidades do artista, mas também de quem se digna a observar sua arte, sua trajetória, sua construção.
É preciso ler Walter Benjamin, ainda. E de novo.
O escritor se torna digno de dar ponto final à sua obra quando, como em “A mulher faminta”, consegue pôr no papel aquilo que o consumia, e assim, mantém-se vivo do luto que o matava. O morto no apartamento era ele, a mulher faminta… a própria Morte, que a todos nós cerca, lastimosa, de não poder nos engolir antes do que as Moiras determinam.
Mas engolirá.
Tiago Germano, brilhantemente, constrói uma narrativa vibrante, que nos cativa pelas sutilezas na construção de seus personagens, pela brilhante e inteligente utilização dos clichês da nossa época de consumismo e aparências, seduzindo o leitor para dentro de uma história que nos emociona por sua, eu diria, milimétrica estrutura, pelo detalhamento de rotinas e hábitos, por personagens que espelham tão bem suas aparências para os leitores através de suas linguagens, que gera em nós a sensação profunda e insistente de conhecê-los ou termos conhecido, esbarrado e conversado com algum deles em algum distraído, e corrido, momento de nossas vidas. Talvez tenhamos uma Mayra no Facebook.
Talvez você seja a Mayra de alguém. Talvez já tenha esbarrado com Lorna.
Se você, leitor, deseja um livro que te apresente mulheres, e não estratagemas de beleza e inércia, que te faça vibrar com a figura de um escritor comum e, por isso extraordinário, que te pegue pelos contratempos, pelos cotidianos, pelas rotinas, pelo olhar do autor que, como cronista, sabe entrever e nos mostrar as delicadezas das teias do Mundo, o livro que você busca é “A mulher faminta”.
“O som enche não mais aquele quarto de onde fui banido, mas o quarto onde a trancafiei, em que lágrimas devem ser choradas e sua memória viverá um pouco mais para depois também morrer, junto comigo. O quarto onde permaneço insone, olhando letárgico para as paredes nuas. O quarto onde por muito tempo não haverá espaço para mais ninguém além de nós dois.” (A mulher faminta -Tiago Germano)
Bibliografia
Ana Cristina Cesar – Correspondência Completa
Baudelaire – As flores do mal
Walter Benjamin – O capitalismo como religião/ A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
Adorno – Dialética do Esclarecimento