Valentina Feita de Arco-Íris – Episódio 4
Valentina Feita de Arco-Íris
(Série Policial em 6 Episódios)
Episódio 4 – Ninguém Me Prometeu o Céu
Claudiney Ferraz pronunciou a frase “uma verdade para contar” de uma maneira tão dolorosa e condescendente com essa dor, que Valentina duvidou que a visão dos fatos que o elegante homem do jornalismo apresentaria fosse realmente a verdade nua e crua, sem a maquiagem e figurino de quem quer se livrar de sua culpa no cartório.
– Detetive, o que eu tenho para dizer pode ser um assombro ou o ponto no ‘i’ que faltava para você preencher todas as lacunas…
– Ferraz, por favor, sem rodeios! Acho que a Emily merece pelo menos a apresentação das cartas na manga, com o mínimo de honestidade; disse Valentina aguardando por um reação exasperada do seu interlocutor.
Porém, o silêncio permaneceu como carro-chefe do comportamento de Ferraz diante das provocações da investigadora particular.
– O que você sabe da morte de Oscar Tedesco?
– Um homicídio em que a vítima reagiu a tentativa de roubo. Bom, nada foi levado. Mas, dessa maneira que tratamos… A polícia tratou a morte do Tedesco.
Ferraz notou o vacilo de Valentina em se reconhecer como ex-policial.
– As feridas ainda sangram, não é, detetive?
– Não. Contudo, cicatrizes tendem a ser imagens maculadas de um tempo em que nos achávamos imbatíveis.
– Hummm. É vida que segue.
O jornalista serviu-se de mais uma dose de uísque. Virou o copo, não deixando gota para trás. Valentina observava o homem, que, apesar da austeridade inicial, parecia reduzir sua coragem.
– Tá tudo bem, Ferraz. Quem não tem o seu fantasma enterrado no porão.
Ferraz fez um giro de 180 graus para olhar o rosto da detetive. Valentina controlou os nervos. Sabia que o jogo era perigoso, que estava lidando com alguém capaz de entregar o primeiro prêmio a um desconhecido ou de mandar para o inferno um adversário.
– Afinal, o que tem o Oscar Tedesco? Na investigação, nada de mais foi encontrado, nada que fizesse com que desconfiássemos de uma conspiração.
Ferraz, pela primeira vez, abriu mão do silêncio como estratégia. Sem titubear, despejou a história mais inventiva que Valentina já havia escutado. Só que as invenções eram, na realidade, a dinâmica de um mundo inalcançável para ela e os demais mortais. Talvez rumores sobre perversidades no reino dos endinheirados, talvez um desejo obsceno de mergulhar nas wild parties dos milionários. Talvez.
– Senhorita Soares, se assim me permite tratá-la… A foto que te enviei da Paola fotografando a Emily é, digamos, algo que elas gostavam de fazer. Mas que implicava o envolvimento de outras pessoas.
Claudiney Ferraz interrompeu sua fala. Olhou em volta e viu o copo vazio. Examinou a garrafa de uísque que continha metade do líquido. Mais uma dose, que ingeriu com competência.
– Um suplente de vereador precisava da aprovação de um contrato com uma empresa de segurança e vigilância, no final dos anos 90. O titular da cadeira já sabia do jogo e colaborou no esquema. Edital da licitação lançado, as fatias do bolo já distribuídas. Mas ocorreu um contratempo. Uma das empresas concorrentes soube da articulação do suplente. Ele não era um homem poderoso, apavorou-se, quase pôs tudo a perder. Só que o proprietário da empresa escolhida para vencer o edital teve uma ideia. Como ele tinha pleno conhecimento que o dono da firma rival alimentava uma verdadeira obsessão sexual pela sua irmã de 17 anos, o que ele fez?; Valentina fez um sinal para Ferraz, ele parou a narração.
– Preciso de um uísque.
A detetive se levantou e, sem cerimônia, se serviu. Pediu mentalmente perdão para Sabrina, pois sabia que a amiga, secretária, amante acreditava que ela era uma alcoólatra. Ferraz recomeçou a sua viagem ao passado-presente.
– O empresário convenceu a garota a se deixar fotografar de lingerie e enviou para o sujeito e disse que se ele cedesse espaço sem reclamar, receberia mais e mais fotos, com a ousadia subindo, até estourar o termômetro. Assim, nasceu o Clube X. Esse recurso começou a ser usado, se expandiu, mais empresários, políticos e pessoas com recursos que precisavam de um força para fazer deslanchar suas propostas. Fotos, encontros e algo a mais, se todos estivessem de acordo. Jovens mulheres ricas cafetinadas pelos próprios pais, tios ou responsáveis. Grana alta, viagens e toda sorte de prêmios. Traumas inesquecíveis… A outra face da moeda. E é aí que a Emily entra. Detetive, sabe quem são os dois empresários do início da história?
Valentina se antecipou, ainda que houvesse percebido que a pergunta era retórica.
– Oscar Tedesco e Agenor Valadares.
– Bingo! A Paola surge na história e Tedesco e Valadares, já comparsas, investem no negócio dela, que é a de eventos e cerimoniais. Ela é a rainha do ramo. Já entendeu, detetive? E eu, amigo de infância, rejeitado como namorado, tive a chance de me redimir com a Emily… Mas veio essa tragédia. Enfim, detetive, a Emily era uma menina perdida atirada aos tubarões, cujo pai passa de ausente a assassinado. Eu nunca confrontei a Paola. Tentei ajudar a Emily…
Ferraz se calou e reduziu à nada o conteúdo da garrafa de uísque. Estava levemente embriagado. Transpirava. O mormaço era terrível. Valentina se levantou, foi até a janela, olhou a vida pulsar sem vivacidade na calidez de um cenário urbano manchado por trapaças. Sem se importar com o seu aliado, que trazia o arcabouço completo da vilania, Valentina fez suas projeções: a ordem de não incomodar Valadares foi dada pela simples razão de saberem quem ele era e que, com certeza, o comando da segurança no estado já fez uso dos feitiços engendrados pela quadrilha chefiada pelo sócio de Paola Tedesco. Imaginou quantas meninas estavam nessa jogada, quantas prostituídas.
– Já sabe, detetive… Eu nunca te contei nada. Porra nenhuma!
Sabrina tomava uma dose de uísque pós-expediente. Valentina refletia sobre qual a melhor forma de abordar as descobertas com Muñoz e de apresentá-las como revelação para Paola. A encenação de mãe em desespero controlado fazia sentido. Apesar de que os olhos de Tedesco deixavam transparecer uma agonia real, de uma mulher que já conhecia o destino cruel de sua cria. Todos estavam amaldiçoados. Principalmente Valentina, que procurava Eva Maria naquele imbróglio sórdido.
– Eu vou embora, Valentina. Eu te espero… Você vai aparecer hoje? Eu tenho um vinho na…
Antes que Sabrina completasse a frase, um tiro de Beretta 9mm fez uma estrago na porta de madeira. A secretária se jogou no chão e a investigadora particular retirou da gaveta de sua mesa um revólver calibre 32. Um novo disparo e novo rombo na porta. De repente, passos indicaram que os criminosos se afastavam da entrada do escritório. A calmaria. Sabrina permaneceu deitada, tremia. Valentina assistia à cena com pesar e sentiu as presenças de Eva Maria e Emily. Segurou o choro e foi consolar a mulher com o abraço mais forte que era capaz. Meia hora depois, Muñoz chegou, dizendo aliviado por Valentina não precisar usar o revólver. Quando viu a porta já determinou que tipo de artefato causaria aqueles danos. Um matador profissional com uma arma do exército.
– Pelo menos é a que o meu sobrinho usa no treinamento; concluiu o tenente.
Valentina recebia o seu segundo aviso. Afaste-se ou morra! Comentou com Muñoz, que prometeu empenho. Considerou se deveria revelar ao amigo, parceiro das antigas, o relato de Claudiney Ferraz. O jornalista estava em perigo? Quem a queria morta? Tedesco? Valadares? Sabrina tomava um pouco de ar na varanda do escritório ao lado. Muñoz informou que registraria o ocorrido como tentativa de assalto, já que havia o risco de que qualquer relação com a morte de Emily Tedesco o colocasse em rota direta com o comando da Polícia.
Na madrugada, de clima ameno, Valentina cobriu os pés com um lençol azul marinho, o preferido de Sabrina, contemplou a respiração suave, regular da amante e concluiu que ninguém, afinal, havia prometido a ela que a vida seria um céu de estrelas.
Continua.
Em breve, o quinto episódio: A Natureza do Escorpião.
(Arte: Martine Johanna)