“Vermelho Russo” (2016)
Vermelho Russo. Direção: Charly Braun. País de Origem: Brasil (Coprodução com a Rússia), 2016.
Vermelho Russo, baseado nos diários de viagem da atriz Martha Nowill, que é corroteirista e atua no longa-metragem, é uma ficção de espírito documental. Duas atrizes, Martha e Maria, interpretadas por Martha Nowill e Maria Manuella, respectivamente, viajam a Moscou para estudar o método de atuação desenvolvido por Constantin Stanislávski. Uma vez lá, com turismo, processos de interpretação e o cotidiano em um território recém-descoberto, a relação entre elas confunde-se com a encenação das obras do dramaturgo Anton Tchecov (com as personagens que precisam incorporar), conduzindo o filme à linha fronteiriça do ficcional com o real e a uma instigante metalinguagem, uma comunicação entre o que afasta e une cinema e teatro.
Tendo como fonte as memórias de Martha Nowill e com os nomes das atrizes emprestados às protagonistas, o diretor e corroteirista Charly Braun, em uma narrativa fluente e segura, faz da experiência um exercício intenso de reconhecimento das diferenças e semelhanças entre as amigas. Desde desentendimentos em relação ao quarto bagunçado às críticas a respeito dos papéis que lhes são designados, vários elementos ganham ressonância no conflito para romper o dique que segurava a tensão existente no relacionamento a ser testado.
Assim, a amizade sofre sérias fraturas. Certezas, dúvidas, alegrias e ressentimentos são colocados em perspectiva, e essas lentes são reféns da compreensão individual de cada uma delas, já que assumem ponto de vistas que se chocam e trazem à tona inseguranças e falhas que até então eram camufladas por uma fortaleza já danificada pela ocultação dessas fragilidades. O ofício da atuação exige geralmente o distanciamento da personagem e a inibição da natureza da atriz (do ator) encobrindo sentimentos em prol da construção de um ser ficcional, mas muitas vezes essa “parede” levantada para preservar a estrutura psicológica da intérprete desmorona contaminando a encenação ou deixando-a à deriva. Martha e Maria não passam incólume à experiência, no mergulho na densidade tchecoviana. Expostas ao método de Stanislávski, ficam na encruzilhada entre a naturalidade pretendida para se transformarem (ou alcançarem) a persona do indivíduo que irão representar e a preservação necessária de si mesmas, para que não se percam no labirinto de asseverações enganosas e fraquezas que invariavelmente sobem à superfície. Um dilema que as coloca diante de um abismo que precisa ser encarado.
Martha revela que se suscetibiliza com as personagens que lhe são oferecidas, que passam ao largo das belas heroínas interpretadas por Maria, que, por sua vez, tem o talento sempre posto à prova. Maria passa o tempo do curso aguardando resposta sobre um papel que deseja muito obter. Então, o real e a ficção mais uma vez se imbricam, com o conceito de beleza sendo fator para uma melhor posição no que concerne à profissão (principalmente diante das câmeras) ou motivo para dimensionar aspectos do ofício que não medem valor, mas potencializam oportunidades.
O clima – o rigoroso inverno russo –, a dificuldade com o idioma e o estranhamento com as particularidades de Moscou servem como espelhos da relação de incomunicabilidade que se instala entre elas e sobre o deslocamento que sentem. O não dito, quando instigado a se pronunciar, surge como uma força represada e por isso mesmo carrega, como se fosse uma enchente, afinidades e ternas lembranças permitindo que as discordâncias e más recordações tomem o primeiro plano e se efetivem provocando ruídos na interação entre as atrizes. A inferiorização que Martha sente emanar de Maria em relação a ela e as dúvidas de Maria no que tange a sua carreira como atriz são barreiras para um entendimento sem cicatrizes.
A metalinguagem tem uma dupla função em Vermelho Russo: o de apontar as cisões não identificadas ou silenciadas na amizade e a de reconstrução dessas identidades que, a partir das personagens da peça Tio Vânia, são obrigadas, em nome de uma melhor representação, analisar para compreender aquelas vidas que devem nascer, e nesse processo, pelo modo como são afetadas, reencontram-se, conciliam-se.
A exploração das ruas e monumentos de Moscou também é algo a se destacar. A beleza e o espanto de um território que a câmera dá a conhecer, além dos cenários como o alojamento em que Martha e Maria estão hospedadas – uma espécie de retiro para velhos artistas aposentados, mostrando o contato com os funcionários e residentes. Uma câmera que procura detalhes, consciente da fugacidade do tempo, que em breve a Rússia ficará para trás, uma passagem que deixará marcas, sejam amargas ou suaves.
A química entre Martha Nowill e Maria Manuella contribui para que a experiência seja recompensadora. Emprestando seus nomes às personagens e forjando as miudezas e grandes temores que conduzem ao descalabro de vínculos considerados sólidos, as atrizes perpassam as emoções explícitas e subjacentes no texto e equilibram drama e humor entregando performances consistentes e expressivas. Além delas, a atriz portuguesa Soraia Chaves, o multifacetado Esteban Feune de Colombi (ator, jornalista e escritor argentino), que filma tudo ao seu redor, promovendo uma nova camada ao jogo cênico, reforçando a metalinguagem, e Michel Melamed, um ator brasileiro que gerará mais um curto-circuito na conexão entre Martha e Maria, apresentam os prazeres e as rugas da representação em extraordinárias participações.
Vermelho Russo é uma obra que, pelo estudo de personagens e metalinguagem, investiga a adaptação de duas mulheres a um território distante e estranho e como os afetos despertados desafiam sua amizade, levando-as ao limite e servindo como catalisadores para a redescoberta da relação entre elas e de si mesmas. Autodescobrimento, relacionamento e arte em pulsação com uma reflexão sobre o cinema.