Virgínia
Tic Tac
São duas da manhã
compulsão, nervosismo, pulso acelerado, cigarro meio tragado. Fala ao telefone com uma voz bêbada, era sua quinta dose de uísque, era sua décima noite sem dormir. Em mais um bar qualquer, já sem memória de que dia da semana era.
Alguém a chama para conversar, mais um daqueles que insistem em querer atenção. O cigarro já quase no fim é trocado por outro ainda no começo, esse hábito, às vezes, era uma ótima saída. Pensa em conversar, mas acha melhor não, “ele tem cara de quem está bêbado e eu não quero concorrência”.
Caminha no silêncio
Do outro lado da rua alguns amigos conversam numa penumbra, passa um, dois, três quarteirões até achar outro bar. Resolve que ali é hora de sentar.
Tic Tac
São seis da manhã
ela continua no bar, pega o último cigarro, olha para o garçom que com cara de bosta parece rezar para que aquela maluca o deixe ir para casa. Pedido feito e aceito! Depois do derradeiro trago, pôs-se a caminhar, ou a tentar. Esbarra, cai, tropeça, anda cambaleante pela rua amanhecida da capital. Ela precisa de um café, um bem forte, daqueles que cura a bebedeira e te prepara pra dormir.
Já sem sapato, seus pés caminham no asfalto, escuta uma música boa vinda de um apartamento qualquer. Chega à esquina, para e olha a padaria do outro lado da rua. A fome resolveu dar as caras, mas não tinha a menor condição de socializar. Atravessa, quase é atropelada por um motoqueiro babaca. Fala alguns palavrões, entra na padaria e, ainda que de sobressalto, pede um café.
O dono da padaria já a viu muitas vezes por ali, sempre no mesmo horário a ruiva pedia seu café bem forte e seu misto-quente. Morava na rua atrás da padaria, fazia aquele caminho sempre que acabavam suas esperanças de um bom fim de noite.
Achou que talvez fosse melhor tomar mais um café, pegar um maço de cigarros e ir para casa. Pagou a conta contando as moedas da noite quase encerrada.
Tic Tac
São quase oito
e chegar em casa é quase um conforto. Tira o sapato, a roupa, “acho melhor um banho, eu preciso de um banho”. Já limpa e pronta pra outra, procura na bolsa o maço de cigarros, na sacada observa o trânsito e decide que odeia a cidade antes das três da tarde.
Tic Tac
o relógio não para
e ela nem repara que hoje já é sexta, lembra que não gostou da última noite. Não achou graça nas cenas repetidas, nem nas companhias invisíveis que a cercavam. Por dois segundos sentiu falta da realidade, achou melhor dormir.
Tic Tac
Meio-dia
quem disse que conseguiu dormir? o isqueiro, o cinzeiro, o copo de coca, a metade do lanche. Caminha por alguns minutos, enquanto no som “Lyla” é sua companheira. Pensa na falta que sentiu da realidade. Por que isso agora? “Eu estava tão anestesiada, pra que acordar?”
Acha que é melhor nem beber e nem fumar hoje, tenta arrumar a bagunça em sua casa, em sua vida. Acha alguns papéis velhos, um CD do Faith No More que ela tinha ganhado do ex, algumas fotos e bilhetes amassados. Lembra bem daquela música, daquele refrão e, principalmente, da voz suave dele cantando em seu ouvido. Do arrepio em seu pescoço, da mão quente em sua cintura. Lembra como se fosse hoje e por alguns segundos sente saudades.
Acha melhor ouvir algo mais forte, precisava se concentrar no caos para dele se reconstruir, “pelo menos por hoje”. Virginia não sentia fome, mas a dor de cabeça continuava ali. “Oh ressaca do cão, só mais um café para me ajudar”. Passa seu café, queima o dedo no vapor quente, xinga sua falta de sorte, seu desastre. Brinda sua falta de jeito, com as pessoas e com os sentimentos. Sente uma fisgada quando pensa em sua covardia, resolve não pensar, abstrair. Por isso gostava da anestesia do álcool em seu corpo, era mais fácil pensar sem sentir dor.
Volta novamente à sua desordem, seu caos particular. Sem pressa vai vasculhando sua própria história. Era impossível não se recordar da escuridão, das paredes. Ela não esconde o nervosismo, pega um cigarro, segura entre os dedos, pensa em acender, desiste, acende. O trago desce cortando a garanta, sente um alívio na alma.
Ela vem se controlando há tanto tempo, tapando o sol com a peneira, levando a solidão como única companheira, amando na escuridão e odiando tudo o que um dia sonhou. Por isso ela não costuma dormir à noite, um pesadelo terrível a atormenta. É sempre ela naquele precipício esperando para pular, vestida de vermelho num mundo preto e branco. Ela é a destruição, o precipício sua estrada. Ela está morta, ele quer vê-la ressuscitar. Mas pular ou não pular? O que fazer, hein, Virginia?
“Quando chega a hora, precisa saltar sem hesitar”. Lembra como se fosse a personagem de seu filme favorito ambientado em algum bairro boêmio de Paris.
Copo de uísque,resolve beber. Cigarro aceso, com seus devaneios ela senta na janela do sétimo andar, pernas para dentro, corpo inclinado para fora. Começa cantarolar Nina Simone, o dia está acabando, ela se sente bem e com uma enorme vontade de pular.
Sentada no parapeito, as mãos no copo de uísque, olha fixamente a chuva se aproximando. Deseja sentir cada gota daquela tempestade para saber que ainda está viva,o vento toca suavemente seus cabelos, um frio sobe sua nuca provocando arrepios intensos. Alguns goles no cowboy, olhar atento esperando o momento certo, balança as pernas como se estive suspensa. São sete andares, três segundos, uma eternidade. Ela se prepara, uma golada final, um último suspiro. Sua mente viaja, seu corpo também.
Um segundo, dois andares.
Dois segundos, cinco andares
Três segundos…
Faz duas horas que está sentada na janela fitando o mesmo lugar, cantarolando a mesma música. Um senhor na loja da esquina percebe a moça brincando com o destino e com a sorte, totalmente sem juízo, pensa ele. Ela nem repara, só percebe o tempo quando nota que talvez não seja mais aquele dia. Seu cigarro em cima da mesa a retira de seu precipício.
Tic tac
são cinco da tarde desse dia qualquer
Depois de ouvir Nina Simone pela vigésima vez sente que deve fazer algo. Não pode mais se esconder, não pode mais viver na escuridão. Cansou de andar de mãos dadas com a covardia. Por dois segundos seu sangue ferve, precisava ser melhor. Era o momento, pensar, lembrar não muda o passado. “Está na hora, Virginia”.
Suas partidas são sempre assim, morre de medo de ir e mais ainda de chegar a algum lugar. Por algumas rasteiras de seu próprio pensamento ela chegou até aqui. Não sabia se ia voltar, nem sabia como partir, porém era aquele o dia de sua revolta. Consigo mesma e com o mundo em que vivia presa.
Roupas, sapatos, fotos, cartas, endereços, mais fotos (algumas rasgadas). A bagunça que estava fazendo era necessária para achar o que precisaria levar com ela. Malas prontas?
Tic tac
duas horas já se foram
e ainda está arrumando as malas, sempre tem a sensação de esquecer algo. Desta vez era mesmo preciso deixar algo para trás, era sadio e seguro. E, por alguns segundos, pareceu recobrar a consciência. Aquela mesma que a tinha tirado de seu lugar certo, de seu futuro incerto, mas que ela queria tanto. Não quis mais planos, sempre dava errado, não queria uma segunda chance de nada, Virginia só queria um motivo.
Tic tac
são 8 horas já na rodoviária
Ela que nem sabe aonde quer chegar, tentando a sorte para ver se ao menos uma vez a vida lhe sorri. Na sua passagem, o destino era uma cidade interiorana qualquer, na sua mente, o ponto final era encontrar quem ela antes havia perdido. Pega a foto antiga em sua bolsa, tenta memorizar os rostos esquecidos há muito tempo, cruza o dedo em figas, reza uma oração qualquer. Lembra-se de sua mãe, chora por alguns segundos, tenta ser forte. Era hora de viver.
Tic tac
são dez horas na rodoviária
Sentada enquanto espera o ônibus, ela se põe a escrever algo. Faz tempo que não pega seu caderno e se dedica a falar consigo mesma. Há quanto tempo ela foge? As palavras, muito mais as escritas que as faladas, sempre foram um dom, uma dádiva que ela pouco ousava usar.
“encontrei no espelho meu corpo,
meu rosto de porcelana, gesso
congelada por dentro.
Encontrei na esquina minha vergonha,
minha ousadia,
minha carne rasgada à navalha.
Encontrei na parada a menina
seus olhos vidrados em cor
encontrei alguém, antes de me perder em dor.”
Olhando assim para ela é difícil imaginar quem é de verdade. Cabelos vermelhos, ora curtos, ora longos, a boca grande e carnuda lembrava uma atriz qualquer, os olhos de jabuticaba herdou da avó, de quem também levou o corpo longilíneo, poucas curvas, muitos ossos. Algumas tatuagens na pele claríssima, é bela, não chega a ser linda. Nos pés, a bota que sempre a acompanha, um short qualquer, que provavelmente já foi a calça de um ex-namorado, uma jaqueta de couro comprada alguns anos antes. Nunca se ligou muito em moda, sempre foi meio largada. Quer fumar, mas não pode, não aguenta mais esperar. Ela odeia esperar.
“Eu não desejo um novo começo, eu quero só mais um cigarro. Eu quero fugir desse barulho, dessa muvuca, dessa cidade que me faz enlouquecer. Eu não quero surtar, mas eu vou surtar, será que já não surtei?”
Entra no ônibus, se arruma na poltrona, espera que ninguém sente ao seu lado. Principalmente aquelas que adoram puxar papo, ela não tem paciência, nunca tem paciência. O motorista liga o motor, ninguém entra, se sente aliviada, mas nem tanto. Afinal, é agora que o show vai começar.
Virginia acorda assustada com a voz do motorista anunciando a parada de quinze minutos. “Foi só um sonho”, ela diz repetidamente pra si mesma. Ainda atordoada pelo sono, desce do ônibus para alguns tragos. Ela precisa de um cigarro, ou melhor, de todos que conseguir fumar nesses quinze minutos. Nem ela acredita na coragem que precisou para chegar até ali, definitivamente ela havia pulado.
Lembra-se dos anos de análise tentando captar todas as mensagens do seu sonho, era sempre o mesmo lugar comum. Hoje, além de mais real, ele se modificou e não foi difícil perceber que ela também havia mudado. Há algo novo em Virginia, seus olhos brilham, seu corpo pulsa de uma forma diferente. Sente um calor, sua energia vital retornando. Pega seu bloco de notas, rascunha por alguns momentos seus pensamentos.
“Foram tempos difíceis onde só a insanidade me manteve a salvo, foram tempos incompreensíveis para aqueles que me amam, mais ainda para mim. Foi necessário me perder por algum tempo, nem sei quanto tempo passou, nem quis contar. Nesse estado de letargia não ficamos muito presos à contagem dos segundos, na anestesia não importam os dias, mas sim a sensação.”
Hora de voltar para a estrada, ainda há algumas horas a percorrer, alguns quilômetros para cruzar e não importa mais se tem alguma recompensa final. A letargia passou e já é hora de batalhar.
Olhando pela janela, ela repara na paisagem que se modifica, há algo de familiar nessas estradas. As araucárias no meio do caminho, a neblina fria do fim da madrugada anuncia que ela está próxima de chegar ao seu destino. Talvez mais uma ou duas horas, pensa ela, lembrando que talvez não esteja preparada para o frio que faz por lá. Sem um pingo de sono, com a mente a milhão, lembra-se do cheiro de café das manhãs na casa da mãe, do pão caseiro fresquinho. Lembra a menina que era, todos seus sonhos, seus planos, as músicas antigas.
Da mãe Virginia herdou pouca coisa. Desde a trágica morte daquela que sempre a protegeu, nunca mais tocou nenhuma música do Roxette, não havia mais girassóis na janela e nem um perfume doce pela casa. Sobraram lembranças e solidão com gosto de café.
A placa de divisa dos estados se aproxima, logo mais a nova Virginia se encontrará com aquela que deixou para trás há muitos anos, acertar contas com o passado, passar a limpo seus erros, descobrir quem é de verdade. Ser alguém, sair dessa sobrevida, é esse o pensamento cada vez mais crescente nela.
“Eu me perdi quando te perdi, mãe. Eu me tranquei aqui tentando te guardar em mim, eu preciso voltar para casa, encarar a realidade de não te ter mais, me vencer, vencer meus medos. Esses medos que me impedem de crescer, de todos eles eu preciso me libertar”.
ogo à frente vislumbra a rodoviária de sua antiga cidade. Ainda sabe o caminho de casa de cor, o chaveiro continuava o mesmo, a casa esteve fechada desde então. Tem muita poeira para limpar, dela, da casa, da sua memória, da sua vida. Ela nem percebe, mas já é outra do começo da nossa história. Mesmo sem saber aonde chegar resolveu arriscar, sair de sua zona de conforto, optar por fazer seu coração voltar a bater. Agora entendia todo seu pesadelo recorrente, quando a vida te dá uma oportunidade de partir sem hesitar, sem olhar para trás, não há tempo para analisar riscos, nem pensar nas consequências. Ou se salta ou se deixa a vida passar apenas olhando da janela.