Zumbis e histórias de terror são modas de dois séculos
Bem, o título deveria incluir e fantasmas e demais seres sobrenaturais, mas é melhor ir logo ao assunto. Os zumbis fazem parte da tradição norte-americana desde muito antes dos Contos da Crypta, Além da Imaginação, American Horror Story ou a novíssima Dark (as duas últimas disponíveis na Netflix), eles são parte do imaginário saxão e anglo-saxão desde pelo menos o século XVIII. E estou falando só de literatura e não da cultura afro-americana espalhada pelo Delta do Mississipi nem de pactos com o canho feitos por bluesmen nas encruzilhadas.
Se no Novo Mundo, gigantes como Edgar Allan Poe e Herman Melville deram um jeito de assustar meio mundo com seu ideário de culpa protestante filtrada pelo horror sobrenatural, histórias relacionadas a mortos-vivos, fantasmas e possessões também brotam da mente de escritores como Walter Scott, Daniel Dafoe e, especialmente pra este texto, Robert Louis Stevenson desde antes de alguém pensar em fazer uma série de quadrinhos (e há uns poucos anos televisiva) chamada The Walking Dead.
Claro que a explosão para o imaginário da cultura pop se deu já nos anos 1950, quando aos medos protestantes uniu-se a ideia do fim do mundo via esquentamento da Guerra Fria e ou cataclisma nuclear. Quem estiver a fim de sentir a respiração um pouco suspensa e aquela adrenalina de coração acelerando sem perceber o motivo, pode ir direto em Janet, a Aleijada, de Stevenson. Tem versões digitais pra baixar de graça num monte de lugares.
Se alguém precisa de motivos para enveredar por algo aparentemente inverossímil –– e porque perder tempo discutindo é algo que eu gosto de fazer quando alguém diz que não acredita em algo porque esse algo não é corpóreo nem visível ou tangível única e exclusivamente ––, custa nada lembrar ser esta atitude um equívoco tão inominável quanto bobo. É desse mar de desconhecimento, de expectativas que não podem ser nunca satisfeitas é que nasce o apelo universal a esse tipo de história. O horror é, acima de tudo, receio do que não se conhece e não se pode determinar nem origem nem causa ou efeito. No escuro não residem só monstros imaginários, há muito de algo alimentado secretamente em nós mesmos.
A não ser que se descubra e mostre outra língua universal que não a matemática para determinar, descrever e comprovar só o que é corpóreo, visível e tangível em proposições equivalentes. Em termos simples: a matemática é o único meio possível de provar a existência de coisas não corpóreas etc etc. E isso não é religião, é fato. Ou você já viu um fóton ou um quark? Mas acredita neles, né?
E a palavra é ACREDITA, porque não sabe ler a língua que comprova a existência deles. Ao mesmo tempo, nem Deus nem os aliens resolveram bater um papinho conosco por meio da única língua possível. Ao menos não até hoje e dificilmente até este Natal.
Resumindo, nem a fé nem a ciência tem a resposta para nosso pequeno período aqui, mas irrita ver nos dias que correm qualquer zé-ruela vaticinando que “religiões são seres imaginários, só confio na ciência”. Tem método científico nenhum, leu porra de livro científico nenhum, mas quer dar uma de bonzão na base do puro e simples aparecimento e tapinha conveniente nas costas dos amiguinhos. Um apoia o outro numa guerrinha bastante ridícula de curtir e compartilhar nas mídias sociais desta vida de início de século 21.
Sobre o assunto, alguém mais tarimbado que eu disse certa vez:
“Quando alguém está honestamente certo 55% do tempo, isso é muito bom e não faz sentido discordar. Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, sinal de boa sorte… mas o que deve ser inferido sobre estar 75% certo? Os sábios diriam que é algo suspeito. Bem, que tal 100% certo? Quem quer que diga estar 100% certo é um fanático, um criminoso e o pior tipo de crápula”. Velho provérbio judeu da Galícia, citado por Czeslaw Milosz.
Sobre boa literatura e horror concreto, há mais:
“Particularmente, desconfio de políticos ou representantes do Estado (poucos escritores e artistas confiam) e acredito que as pessoas entram na política por duas razões: uma negativa, a de não terem talento para mais nada; outra positiva, a de que ter poder é sempre delicioso. Contra isso deve ser considerada a verdade de que o governo cria leis saudáveis para proteger a comunidade e, no grande mundo internacional, pode ser a voz de nossas tradições e aspirações.
Mas ainda é fato que, em nosso século, o Estado foi responsável pela maior parte de nossos pesadelos. Nenhum indivíduo ou associação livre de indivíduos poderia ter chegado às técnicas de repressão da Alemanha nazista, ao massacre de bombardeios intensos ou à bomba atômica. Departamentos de guerra podem pensar em termos de milhões de mortos, enquanto o homem médio pode apenas fantasiar sobre o assassinato de seu chefe. O Estado moderno, seja em um país totalitário ou democrático, tem poder demais, e provavelmente estamos certos em temê-lo.
É relevante o fato de que os livros agourentos de nossa época não sejam sobre novos dráculas ou frankensteins, mas sobre o que poderia ser chamado de distopias – utopias invertidas, em que um governo megalítico imaginário leva a vida humana a um extraordinário extremo de miséria”. Exemplos não faltam, de Jogos Vorazes a Divergente (para os mais jovens) e de Blade Runner a Robocop, sem esquecer de Mad Max. Em comum entre todos, a percepção de que estamos caminhando a passos largos rumo a um abismo inevitável, dado nosso pêndulo na existência, sempre num incômodo limite entre o bem e o mal.
Relativizações simplistas sobre a não-existência de um ou de outro jamais foram suficientes para suprimir nossas angústias. Sabemos bem o que rói os calcanhares de nossos cérebros de madrugada exatamente porque temos exata noção do que é fazer o mal ou o bem. Da dificuldade de praticar o último é, entretanto, que nasce nosso medo da rua mal iluminada à noite ou da solidão e do silêncio por longos períodos.
O trecho citado acima entre aspas é do Anthony Burgess, tentando explicar algumas coisas sobre A Laranja Mecânica, seu ótimo e ainda mal-compreendido livro que acabou de fazer aniversário e continua imprescindível em qualquer biblioteca desde quando foi lançado, na Grã-Bretanha, em 1962.