Três excertos de um poema de Mariana Basílio
Mariana Basílio nasceu em Bauru, interior de São Paulo, em 1989. Escritora, poeta e tradutora. Licenciada em Pedagogia em 2012, concluiu Mestrado em Educação em 2015 – ambos pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Dedica-se à literatura desde 2014. Traduz diversos autores americanos e latino-americanos, entre eles, Alejandra Pizarnik, Denise Levertov, Edna St. Vincent Millay, Langston Hughes, Maya Angelou, May Swenson, e Silvina OCampo. Colabora com portais nacionais e internacionais, escrevendo também ensaios. Publicou seu primeiro livro de poesia, Nepente, em 2015 (Giostri). O segundo livro de poemas, Sombras & Luzes, dedicado ao poeta português Herberto Helder, foi publicado no Brasil (Penalux, 2016) e será publicado em Portugal (prelo, 2018). Tem poemas publicados em diversas revistas nacionais e internacionais. É vencedora do prêmio ProAC 32/2017 do Governo de São Paulo pelo terceiro livro de poesia Tríptico Vital (prelo – Patuá, 2018), dedicado para Hilda Hilst. O livro será lançado durante a Flip 2018. Site para contato: www.marianabasilio.com.br
[Sobre o livro de poesia Tríptico Vital
Dividido em três seções – Da Existência, Da Experiência, Da Extensão – o livro é um poema longo, uma narrativa sobre o desenvolvimento do ser humano. O propósito inicial é apresentar o que somos sobre três possibilidades: vida, morte e transcendentalidade. Do indício de um possível início (inodoro, impossível, se repensado entre milhares de teorias), desenvolvo a primeira seção. Perpassando o viver representado na fecundação e na gestação, passando o ser-a-ser – o bebê e seus primeiros meses, e os primeiros anos da infância e adolescência – codificando na consciência as mazelas e os benefícios sociais que nos impelem. A tomada definitiva de consciência na vida adulta encerra a primeira seção, sendo retomada na seção seguinte.
Da Experiência é o lado mais individual do livro, seja pelas constatações e indagações internas e sentimentais apresentadas, seja por ser a parte mais coletiva da história. Inúmeras vozes do campo exterior se encontram e recontam as histórias da mesma voz interior, envolvendo temas como assassinato, estupro, guerra, homofobia, misoginia, racismo, etc. Assim, procuro englobar o tecido principal do enredo experiencial humano. A seção é encerrada com o enfrentamento da morte por parte da narradora (ou eu lírico) na velhice, chegando então ao clímax do livro: a seção final Da Extensão. Tentativa de recobrir os escombros da morte, da memória, da inteligência, a narradora questiona e apresenta fenômenos da transcendentalidade e da materialidade que guia o seu ontem no hoje – que também é um possível sonho futuro.
Tensões do início, do meio, e do fim da obra se embaralham e talvez nos permitam condicionar os rostos e os restos nos detalhes e pesares revestidos de vida humana: acachapante. Mas prosseguimos, do sol aos sóis.]
***
Trecho 1 – Seção “Da Existência”
[…]
Não há nada que revele menos do que
Discursos mal descritos.
É preciso procurar cuidadosamente as
Próprias diferenças na unidade
Da única possível essência:
A origem factual dos nascimentos.
A profecia antes de acontecer.
O futuro da memória antes da nossa
Consciência imperar nos poros.
A vida é proclamada feto ☼
Após oito semanas embrionárias
Somos 40 semanas de gestação.
No primeiro mês surge a fecundação –
União do óvulo com o espermatozoide.
No segundo mês a estabilização –
O coração bate desesperadamente
Renascendo 150 vezes por minuto.
Formando o sistema nervoso e o
Aparelho digestivo, em sequências,
Na origem circulatória e respiratória –
Olhos, boca, nariz, braços e pernas
Crescem feito extensas trepadeiras.
No terceiro mês da vida uterina
Estruturalmente o esqueleto se abre
Feito um leque de antigas procissões.
Costelas, dedos, mãos e pés se firmam.
Os órgãos se completam na
Altura de imensuráveis 14 cm!
Passando à complexidade do quarto mês.
Mais 2 cm na origem de um todo:
Sugando e engolindo um só cordão
Formado umbilical na existência.
Enxergamos as alterações da claridade.
Enxergamos as alterações do peso corpóreo.
Diferenciamos o amargo do doce
No interior cintilante e circular:
Somos 16 cm de existência.
A partir do quinto mês, há teias de
Fios capilares, cílios e sobrancelhas.
Das trompas, há o primórdio dos gêneros.
Com 25 cm nos movimentamos, exaustos,
Franzindo a testa, chupando os dedos.
No sexto mês ouvindo sons externos,
Os lábios são tulipas no corpo de 32 cm.
As pontas dos dedos sulcam os
Traços das futuras digitais.
Adiante, proféticos. No sétimo mês,
Bocejos: misto de cansaço e ansiedade.
Dormimos mais, aguardando o rebentar
Que logo se iniciará completamente.
Os órgãos se definem e a audição
Se adula em canções e conversas.
É chegado quase o fim: oitavo mês.
Dançamos no insight do nascimento!
45 cm na festa de espumas do ventre–
De cabeça para baixo rimos no porvir.
Uma camada de gordura se fixa na pele,
Como um traje elegante da cena final.
Pulmões fortes, ossos resistentes.
A festa termina. O nono mês se exalta.
Quase 50 cm! Órgãos todos formados.
A respiração se fixa sobre o frágil controle.
A bolsa d’água incha e explode –
No grito mais alto da humanidade.
(A espera diminui na procissão derradeira.)
A vida nos resvala, da carne à curva.
De espera em espera, ermos seguimos.
De ventre em ventre, em vistas radiantes.
Dos pés à cabeça, nascemos puxados.
Rumo ao exterior, vivendo, choramos.
Porque os segundos se iniciam e ardem.
Porque o tempo é quando te invadem.
[…]
*
Trecho 2 – Seção “Da Experiência”
[…]
Sozinha, vago entre os muros.
No âmago de ser experiência.
No álamo de ter parâmetros.
Vivendo no que se preconiza.
Aos trinta e dois anos de idade.
O vazio das absurdas encostas.
O caminho dos vis ardores.
Na neblina de árias vozes
Reparo no que não se nomina.
No núcleo cerebral se entranham
Malícias e rasuras celebrando a
Transcendente dinastia humana.
Inútil, reflito as sujeições e as sugestões em
Incompletas vias: sou a fome abastecida
Com inúmeras vãs respostas.
Do nada voltaremos ao nada, dizem.
Tracejando nas constantes criações e
Sequências os sentidos físicos.
Cavada na astrologia e nas ciências
Ocultas, vago coberta de enxames.
O que derramam nos altares são enganos.
O que derrubam nos degraus são orações.
[…]
*
Trecho 3 – Seção “Da Extensão”
[…]
O corpo, estendido, me escapa.
O nó desfeito desata a implosão
De navegações inteiras.
Inspirando mesmo o sepulcro.
O corpo, estendido, duro.
Oco como o vasto mundo.
Duro como o feito da fala!
Novelo de órgãos entrelaçados.
Mijos escorrendo rios
Fezes ladeando mares
A terra me dá boas-vindas!
O corpo, estendido, exausto:
Do incêndio, do canto, do livro
Do sonho, da cruz, da pauta,
Da esperança, do útero, da palma,
Do engano, da espada, do poste,
Da avenida, do quase, do retorno,
Da bandeira, do desastre, da harmonia,
Do crescimento, da fratura, do idioma,
Da farra, do caldo, da flor, da náusea,
Do ranho, da fralda, do espelho, da lástima,
Da casa, do coro, da causa, do logo,
Da fauna, do forro, da foda, do enlace,
Do traste, do homem, da moça, do trauma,
Da lápide, do parente, da mentira, da verdade,
Do pergaminho, do estralo, da caneta,
Do petróleo, do extermínio, da batata,
Da guerra, do gás, do hélio, da droga,
Da fonte, do foco, do esporte, do atropelo,
Da doença, da constância, da ruga, do riso,
Da fada, do morto, da morte, da vida,
Da fuça, do buraco, do cheiro, do calor,
Do frio, do criado, da rebelde, do traidor,
Da fidelidade, da angústia, do duelo,
Da jagunça, do padre, do pastor, da mata,
Do mar, da travessa, da mansão, do barraco,
Da entranha, do estranho, do tormento, da tez,
Da fofoca, do regaço, da fome, da flacidez,
Do cansaço, do temor, da bomba, do batom,
Do velório, do computador, do riso, do pranto,
Do genocídio, do índio, do preto, do branco,
Do amarelo, do roxo, do verme, do náutico,
Da memória, da saudade, da nostalgia,
Do encanto, do troféu, da soberba, da voz,
Do anel, do colar, do sapato, da meia,
Do vestido, da pastilha, do enfeite,
Do amante, do amado, do papel, da palha,
Do cigarro, do embrulho, do presente,
Da savana, da selva, do querubim,
Da passarela, do retrato, da retina,
Do calhamaço, da fia, da creolina,
Do transplante, do encontro, da vaselina,
Do câmbio, do avião, da queda, do voo,
Da parafina, da pipa, da luz, da sombra,
Da auréola, do pum, da folha, do rastro
Ah, novelo de órgãos entrelaçados!
Córneas fixas nos algodões enfiados.
Diacho, a terra que caga boas-vindas!
O tempo passado é o tempo futuro.
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam agora para um só fim:
A terra me dá boas-vindas!
O corpo, estendido, escapulindo.
O fio da memória, desabando.
Átrio disposto nuclear no
Cutâneo e convexo ânus –
Solidez da Terra sob a terra.
Cavoucam os vermes o
Centro das bactérias –
Cavoucam meu nariz!
Corpóreos incêndios
Corpóreos pretéritos
Sempre presente é o que já passou.
O corpo estancado que acaba.
O fio da memória que se alastra.
(…)
Tudo morre no seu nome.
Tudo morre no seu tempo.
[…]