“A Actriz A Actriz” de Luis Serguilha: um artigo de Sheila Mihailenko Chaves Magri
Sheila Mihailenko Chaves Magri é doutoranda e Mestre em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM. Participa do Grupo de Pesquisa em Ética Comunicação e Consumo-GPECC da ESPM. Pesquisa o consumo de discursos morais, influência digital, usando metodologia dialógica bakhtiniana e análise crítica do discurso. É autora do livro Porta-vozes do capital, publicado pela editora Pimenta Cultural em 2020. Ministrou o curso de extensão Bakhtin: discurso como ação para a Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais. É jornalista, escritora, comunicadora e filósofa.
Luis Serguilha nasceu em Portugal. É poeta, ensaísta e curador de arte ibero-afro-americana. Falar é morder uma epidemia, Os esgrimistas do À-Peiron e Actriz Actriz (O palco do esquecimento e do vazio) são os títulos dos seus livros mais recentes. Criador da estética do laharsismo. Os seus ensaios envolvem-se nos atractores estranhos que atravessam o corpo-arte-pensamento.
As notas de rodapé do artigo se encontram no final da postagem.
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Cenas OUTRAS no manguezal-poema da “A Actriz A Actriz” de Luís Serguilha: uma análise bakhtiniana
Sheila Mihailenko Chaves Magri
Resumo: Este artigo traz uma problematização dialógica bakhtiniana de “A Actriz A Actriz”, de Luis Serguilha. Aborda primeiramente uma leitura dialógica e crítica do manguezal-poema de 1.040 páginas. Num segundo momento, faz uma análise do manguezal-poema, onde observar os dialogismos a partir dos “discursos refletidos e refratados”, dos “receptores imanentes”, de suas intertextualidades e do estilo serguilhiano. Depois, analisa os seguintes conceitos bakhtinianos no manguezal-poético laharsista: “autor-criador”, a “polifonia”, o “ato estético”, “visão estética” e o “tema”. O nosso enfoque é para as relações dialógicas múltiplas que atravessam o texto serguilhiano, sempre dentro da perspectiva das questões relacionadas à ética, a comunicação e ao consumo de discursos.
Palavras-chave: Comunicação e consumo, Ética, Dialogismos, Laharsismo, Luis Serguilha, Bakhtin
“Como sentir a eternidade antes e depois da voz-outra que me atravessa?” [1]
“A Actriz A Actriz” – Luís Serguilha
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Introdução
O encontro com a “A Actriz A Actriz (o palco do esquecimento e do vazio)”, de Luis Serguilha, emergiu no diálogo e em movimento. Aconteceu ao assistirmos à ciranda e crítica literária[2] de sua apresentação. Foi durante uma conferência virtual e que reuniu ensaístas, críticos literários, filósofos, artistas, poetas, professores, cineastas, escritores e jornalistas do Brasil, de Portugal, da Espanha e de Angola. Escutamos a instigante leitura feita pela artista plástica e professora universitária, Paola Zordan, de trechos do manguezal-poema que nos levou para um mundo de fortes transmutações conceituais.
Quatro fatores despertaram o nosso corpo para a leitura atenta-responsiva e para a realização desta análise bakhtiniana. Primeiro, foi estranheza e o encantamento diante de um manguezal-texto. Para o encenador e professor Thiago Arrais, participante da ciranda, Serguilha ousa e cria um “novo objeto de discurso”, pois o manguezal-poema rompe com o estabelecido e surge como “uma literatura de conceitos”. Assim, o manguezal serguilhiano afirma-se dentro de um transgênero literário. Outro motivo que nos instigou foi mergulhar na leitura de um manguezal-poema escrito em 1.040 páginas. Em terceiro, a sua forte potência e intensiva singularidade para despertar diálogos entre vários campos conceituais. Pois, como afirmou nessa ciranda, a ensaísta, filósofa, professora universitária, Ana Maria Haddad, o manguezal-poema dialoga “não só com a filosofia, como com a arte, com a música, com o teatro e outras áreas do pensamento”. E em quarto, foi o desafio mesmo, o espírito de uma aventura existêncial. Assim, tomamos parte do fluxo contínuo deste diálogo-mangue-poético serguilhiano.
1. Uma leitura da palavra-signo em “A Actriz A Actriz”
O escritor e poeta português, residente no Brasil, Luis Serguilha, é criador da estética do Laharsismo[3] e trabalha em seus versos uma composição híbrida de signos que mescla palavras e conceitos da literatura, da fisiologia, da arqueologia, da geologia, das artes e da filosofia. Impulsiona artérias comunicantes enunciativas que religam pensamentos às tensões que existem entre o vazio, o esquecimento, as distâncias, os silêncios, o corpo, o ritmo e o real. Nas palavras do autor “o esquecimento da ACTRIZ é um LAHAR, um movimento sígnico que sabota ininterruptamente o dizer parasita (SERGUILHA, 2020, p. 508)”. O movimento textual é topológico, geológico e sísmico. Durante a ciranda de apresentação do livro, o poeta, ensaísta e cineasta, Marcelo Ariel diz que o inconsciente do poeta na “A Actriz A Actriz” “constrói topologias que falam” por meio de um manguezal-poético. Para ele, Serguilha “escreve (o manguezal) na geologia, nesta erupção”.
No manguezal-poema, Serguilha (2020) constrói imagens poéticas vigorosas extrapolando os limites por meio de dobras do transbarroco[4] . Serguilha ativa cenas em movimentos textuais dotados de uma crueldade-delicada do pensamento sobre o corpo-artista e vice versa. A “máquina de guerra laharsista” de Serguilha vai mobilizando uma multiplicidade de “palavras-signos”, as recombina, deformando seus sentidos e desarticulando estruturas rígidas de discursos morais a partir da combinação criativa de ritmos e imagens afetantes (DEUS, 2017).
Deste modo, o poeta é um artesão-escritor dos afetos. É criador de uma marchetaria intertextual afetivo-volitiva. É um torneador de sentidos dentro e fora de outros. Cria revestimentos afetivos a partir de palavras suas e de outrem que são recortadas com o afiado estilete serguilhiano e coladas em novas composições, beirando as infinitas possibilidades de leituras-marchetarias. Detona nos territórios uma linguagem cataclísmica que, tal como o lahar javanês, agrega uma avalanche vulcânica de sentidos e seu poder erosivo recorta a superfície das páginas. O poeta habilmente retira as palavras e conceitos da sua comodidade de significância mórbida e produz uma colagem exaustiva de novos sentidos lúcidos, que são ressuscitados em ritornelos, em movimentos exaustivos ecoantes e com tonalidades expressivas, rompendo a normatividade. Seu manguezal-poema não trata de estabelecer uma redução do texto pela economia utilitária do uso das palavras ou de promover uma simplificação do pensamento, fantasiada de assertividade e concisão comunicacional. Em contraste com estas formas verídicas, significantes e sentimentalistas, apresenta uma leitura em desvelamento ininterrupto por meio de um ritmo paradoxal e de sentidos afetivos, sendo artesanalmente renominados, sem nomear, a exemplo de como faziam os primeiros poetas, descritos nos estudos de Giambattista Vico[5]. Mais do que isso, a musicalidade na entonação lembra uma sinfonia, uma composição musical cantada, à moda dos trovadores. A musicalidade é expressa no próprio texto, como o sopro no manguezal-poema. A ACTRIZ de Serguilha (2020, p.966) canta:
“…acontecer a ACTRIZ sem razões ecuménicas: a traição ética é sempre em fuga: o teatro é uma dobra da sua própria loucura, das suas singularidades profanas, pagãs, dos seus vazios e dos seus esquecimentos: sopros das mutações femininas, sopros das fragmentações minerais, sopros dos mapas dos acasos, sopros da eternidade em cada voz-géstica. Sopros sem fisionomias, sopros puros do caos, sopros ressexualizados antes do corpo, sopros múltiplos a catalisarem solos inesperados: o PALCO é um sopro intrusivo) (SERGUILHA, 2020, p.623-624 – grifos e pontuação do autor)”
Como diversos ensaístas e especialistas literários e filósofos o afirmam, ler um poema serguilhiano é um desafio, um movimento intenso do pensamento-leitor. As capturas de suas expressões surgem de uma outra e próxima afetação emergente no intervalo entre as palavras por acontecer[6]. Trata-se de ficar à deriva diante de uma provocação-convite para experimentar pela leitura o impensável intensivo, como diz Serguilha em suas publicações, palestras e entrevistas sobre outras obras[7]. Notamos um trabalho dos tempos em permanente experimentação. Aqui se desponta uma ginástica dilatada do pensamento, a partir da complexidade das relações dialógicas, rítmicas e sígnicas. Há um tremendo movimento expressivo. Neste sentido, Serguilha (2020) percorre um caminho totalmente divergente do consumo da palavra curta e igualada, daquela que impera nas lógicas dos mecanismos de busca das mídias digitais. María Ángeles Pérez López, poeta, ensaísta e professora titular de Literatura Hispanoamericana da Universidade de Salamanca, diz que a palavra “desmesurado”, aplicada na epígrafe do livro[8], revela ou dá-nos já o sinal que entraremos num manguezal-poema. Esta desmesura, como diz Blanchot é o imenso, é uma força criativa que não tem medida. Logo, o manque-poema de Serguilha é inesgotável, diz a professora. O manguezal-poema foge completamente ao fast food. A ACTRIZ se opõe ao discurso daquela racionalidade obediente à comunicação no capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2019).
O manguezal-poema emprega a palavra “desmesurada”, no máximo de palavras e no limite da composição, sem reducionismos identitários. Toda palavra no manguezal-poema conta com uma “(in)comunicabilidade rupturante” como Serguilha costuma escrever em outras de suas composições (MOREIRA, 2015). É a palavra escrita pela experiência do “gaguejar na própria língua” e engrandecida de potência na sua abertura plena aos encontros com “mundos possíveis”[9]. Para Américo Teixeira Moreira[10] (2015):
“(…) não se trata de uma poesia de resistência, ideologicamente combativa, mas de uma atitude literária do corpo processual de sistemas linguísticos, numa desrealização e plasticidade inesgotável, quase insuportável para o leitor. A poesia deste autor encontra-se, assim, entre um sincretismo, hibridismo e reflectivo sobre um nova forma de tentativa de (des)codificar o discurso, própria da poesia da segunda metade do século XX, onde vários níveis de leitura são possíveis, numa relação transtextualidade, agudizando a ruptura entre a palavra e a arte, para perder a aura de que fala Walter Benjamim (MOREIRA, 2015)”
É como se o poeta apoiasse na escrita uma inversão na característica representacional da linguagem e a partir do movimento louco e aberrante criasse, por uma língua originária e não maternal, a resistência da própria língua-viva. Uma língua insubordinada à “flecha do tempo”[11] que é forjada na lógica do eu-aqui-agora. É uma língua subversiva e que se adianta e atrasa em instantes contrários aos movimentos dos modelos representacionais. Ela reage à extinção do pensamento. Luta pela ‘vontade de potência” nietzschiana, sendo claramente contra a banalização da vida, contra a entropia, contra a igualização radical pelo “eu”, mecanismos que aprisionam o sujeito utilitário na ditadura do cogito.
Serguilha desperta outras leituras e experiências de mundos quando o nosso corpo-leitor é afetado e nos força a pensar. A partir deste contágio, a “A Actriz A Actriz” pode ser lida como um manguezal-poema dialógico. Ele foi escrito em 1.040 páginas, nas quais as palavras, enquanto signos, não são aleatórias, mas imensamente dialógicas. Os conceitos se desenlaçam das proposições tradicionais, libertando o texto do julgo do sujeito pessoal e psicológico. Os substantivos e adjetivos serguilhianos misturam-se, acontecem e transformam predicados em singularidades que visam descaracterizar personalidades e sentimentos. Dentro desta excitante “trama de palavras”, nos empenhamos em analisar o manguezal-poema “A Actriz A Actriz”, a partir do método dialógico bakhtiniano. Neste sentido, refletimos como o poema serguilhiano dialoga com algumas das categorias de análise de Mikhail Bakhtin[12], filósofo da linguagem e pensador russo do século XIX. Bakhtin acredita que toda palavra é signo e que todo conjunto verbal criativo constitui um sistema de relações marcado pela complexidade e pela pluralidade e que:
“ .. em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), inapreensíveis, e vozes próximas que soam simultaneamente (BAKHTIN 2003 p. 353)”.
O nosso interesse central foi observar as relações dialógicas dentro do emaranhado de “palavras-signos” e de conceitos que compõem o manguezal-poema serguilhiano. Como ressalta o encenador teatral, Thiago Arrais durante a ciranda de apresentação do livro[13], esse manguezal-poema destaca a potência da VOZ.
Para Bakhtin, a palavra é signo sobretudo pela disputa permanente pelos sentidos que ela evoca nos discursos que a atravessam. Para ele, a “palavra-signo” é viva e se constrói em relação ao que não é ela mesma, aberta ao outro e aos sentidos em torno dela. A palavra fomenta as disputas pelos atos enunciadores e lugares enunciativos de fala no tempo. Por isso, a palavra que pode ser dita, nunca é pura ou ingênua. Bakhtin (2003, p. 414) diz que:
“Mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca estão estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas). Sempre se modificarão (renovando-se) no desenrolar do diálogo subsequente, futuro. Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo). Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento. O problema da grande temporalidade. (BAKHTIN 2003, p. 414)”.
A “palavra signo” para Bakhtin está inserida no “problema da grande temporalidade”. Ela fomenta novos estilos e dialoga nos discursos com as problemáticas da vida encontradas na realidade concreta. Palavras evocam discursos. Discursos costurados em formações discursivas dos saberes, como conceitua Foucault (2017). Para o pensador russo, na criação estética verbal, esses discursos atravessam o texto, refletindo práticas e refratando vozes. Este ato criador para a composição desta malha dialógica é realizada por uma maestria denominada “autor-criador”.
Assim, dentro da perspectiva bakhtiniana, estudamos Serguilha, enquanto “autor-criador” na “A Actriz A Actriz”. Percebemos que o “autor-criador” não escolheu por acaso o título do seu poema-mangue. Abreu Paxe (poeta, ensaísta e professor universitário em Angola) diz-nos que, no título do manguezal-poema, Serguilha “suscitou e justificou tudo aquilo que vem acumulando como um escritor-poeta engajado com a expansão, com a multiplicidade, com a diversidade e com a diferenciação”. Paxe afirma que Serguilha usa o termo “actriz” no lugar de “actor”. “É uma ACTRIZ porque o feminino é o lugar da multiplicação”, ressalta[14].
Contudo, Serguilha decidiu também por uma palavra-estamparia estimulada por um dicionários de sentidos, mergulhada em disputas discursivas. Neste manguezal discursivo há um combate de novos sentidos articulados a questões ligadas ao corpo, à política, à servidão, aos vários ritmos artísticos, às problemáticas ligadas à indústria cultural e ao consumo de discursos morais.
Atriz é por si só uma “palavra-signo” instigante. Serguilha articula dois movimentos com a “palavra-signo” Actriz: primeiro uma tentativa de libertá-la destes modelos, enquanto determinantes e necessários e, em segundo, de contaminá-la com outros conceitos, outros mundos possíveis, outros teatros.
Actriz é uma “palavra-laharsista” em estado de transmutações permanentes. A Actriz é um corpo delirante que impulsiona o pensamento imprevisível. Um corpo que foge da representação, escapa da opressão das estruturas. O corpo-poema cria teatros moventes, novos palcos e gera novas dimensões do tempo, que vão libertar a actriz do estigma de gênero classificativo, da ditadura dos padrões vigentes de beleza e de saúde, da objetificação, do patriarcado, dos colonialismos, dos racismos, da servidão, da vigilância, do controle e sobretudo das garras do poder.
Escrita em uma sonoridade contaminada, a palavra-título “Actriz” no manguezal-poema é contraída pelo contraste e obstáculo da letra “C”. O manguezal-poema chama-se “A Actriz A Actriz”, uma atriz duplicada e cada uma delas tem a sonoridade partida. Cortadas ao meio pela letra “C”.
O “C” considerado pelo poeta no meio da palavra é uma partícula intencional neste manguezal de sentidos. Uma partícula singular contagiosa e que não é imaculada. Um “C” que está em afeCto, em aCto, em aCtivo e em Criação (grifos nossos). Tudo neste irrepresentável CORPO, que começa com “C”, em caixa alta. Uma letra que infeCta a palavra e por um instante introduz nela um “C- não” (grifos nossos). Um senão considerado em toda a leitura. Uma negação em palavra-afirmativa.
Por que não este C-não afirmativo e paradoxal? Porque a Actriz personagem serguilhiana surge após a levitação de mulheres-mães e em desaparição do rosto, ou seja, na desfiguração do predomínio do sensório motor presente em uma sociedade que apreende o mundo pelo seu rosto modelar. A Actriz “desrostificada” entra no manguezal desnuda da sua predeterminação. Ela aparece ACTRIZ[15]. É uma imagem engrandecida pela força, rasgando a segunda página, em meio a um acontecer. A sua boca aberta para o mundo reaparece frequentemente em vários ritmos e a palavra ACTRIZ é rescrita à maneira serguilhiana, em maiúsculas, tal qual a introdução de falas das personagens em um roteiro de uma peça teatral.
A ACTRIZ não é monólogo, nem solilóquio da expressão de um eu lírico cantante e monovalente, mas um diálogo híbrido e controverso da voz poética, que tanto pode ser uma narração, quanto a voz da ACTRIZ referindo-se a ela mesma, ao seu duplo na terceira pessoa, ou ressoando do coro entre as personagens rítmicas como o PALCO e a ACTRIZ. Enquanto voltagens verbais, PALCO e ACTRIZ acontecem atuando como outros duplos da ACTRIZ. Eles vão compondo e sendo compostos em uma afluência poética que se infiltra nas as hibridações de sentidos. O PALCO e a ACTRIZ envolvem-se nas personagens rítmicas da ACTRIZ que está por acontecer, ou das ACTRIZES em acontecimentos. Meios, modos e ritmos despontam desabaladamente religados ao tempo crônico. Toda escrita acontece em ritornelos[16] musicais, conceituais e poéticos. A ACTRIZ grita o verbo “ser-acontecer” como um refrão e não como uma definição propositiva. O verbo “ser” do sensível acontece fora de qualquer sentença, fora dos julgamentos do verdadeiro e do falso. Ela grita o que ela é, o que não é e o que há dentro de uma composição acontecimental caótica.
A voz do poeta introduz recomeços sígnicos em uma multiplicidade de variáveis. O notável é que, mesmo na histeria e no delírio, as vozes poéticas na ACTRIZ se arremessam em um labirinto para trazer à tona um discurso ético da diferença, mas destruindo qualquer tentativa solipsista.
A ACTRIZ no manguezal-poema de Serguilha não é um ente, não é uma mulher específica e não se trata de um sujeito psicológico, ou pessoal, ou biográfico. Ela foge de uma história linear. Ela evita a representação do “eu” e escapa à nomeação. Trata-se de uma força-ACTRIZ poética-narrativa que não representa um personagem protagonista da vida, mas que dá expressividade aos pontos de vista da existência dentro de intensidades afetivas. “A Actriz A Actriz” enquanto uma marcheteria-manguezal-estamparia-trama é uma experimentação contínua de vozes, de expressões, de línguas, de distâncias, de delírios, de vazios e de tempos insanos. Os diálogos no manguezal-discursivo dos versos de “A Actriz A Actriz” mergulham no encontro turbilhonar do inédito.
O corpo da ACTRIZ modifica-se por meio do indizível e das semióticas do paradoxal. Nos versos de Serguilha:
“a ACTRIZ grita antes da palavra, fala antes da linguagem, move-se antes do gesto, exercita as dobras da quase-catástrofe, torna-se uma atleta dos acasos dos choques matéricos, confronta as leis da natureza com seu corpo vesano que combate a morte, o sujeito verídico, as causalidades corpóreas e caotiza vozearias que expulsam interpretações, antinomias lógicas através das ressonâncias dos poros-olhantes, das topologias infames, dos ecos inorgânicos: outros pensamentos-gestos ressurgem ao corpo vivíssimo fora da biografia, um movimento infinito, flutuante desvenda a opacidade inatingível do PALCO até o desmoronamento do tempo cronológico” (SERGUILHA, 2020, p.39).
Compreender o manguezal-compositivo “A Actriz A Actriz” de Luis Serguilha, segundo Bakhtin, implica um gesto de leitura responsiva no qual problematizar a vida é um acto-criativo-prece que acontece no triz da duração dilatável (ou dentro de um tempo fora das algemas da cronografia). Nessa leitura bakhtiniana do manguezal-poema percebemos uma ética-estética que, em muitos pontos, dialoga com o conceito do ato responsivo responsável do Bakhtin (2010). A ética “sem álibi” do filósofo russo advém na existência, no mundo da vida e em responsividade ao outro e, portanto, à potência da alteridade. Deste modo, ao lermos os acontecimentos do poema- manguezal de Serguilha, a ACTRIZ torna-se personagem conceitual ética.
Caso a leitura do poema aconteça dentro desta perspectiva dialógica e assim, intersubjetiva, ela provocará a afetação de novas subjetividades criativas e transformadoras delas mesmas e do social. O mundo social é criticado pela correnteza do poema como uma realidade predominantemente identitária. No entanto, ao nos movimentarmos pelos dialogismos dentro da leitura de “A Actriz A Actriz” sentimos a refração de outro discurso, o da re-existência[17] singular e das multiplicidades.
2. Uma análise dialógica do manguezal-poema serguilhiano
Os trabalhos dos estudiosos do Círculo de Bakhtin[18] sobre o universo discursivo da linguagem têm sido aplicados não somente ao romance, mas também à poesia. Isso ocorre quando passam a analisar no poema seus aspectos dialógicos, pois outras vozes sempre emergem a partir de diversos movimentos do eu-lírico em seus diálogos com o contexto e de produção do poema. O próprio Bakhtin (2010), em seu livro “Para uma filosofia do Ato responsável” faz a análise detalhada do poema “Separação” de Pushkin (BAKHTIN, 2017, p.130).
Estes dialogismos foram estudados por vários pesquisadores bakhtinianos na poesia polifônica de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo[19]. Também os pesquisadores do campo da comunicação estudam desde o século passado diversos aspectos comunicacionais em obras literárias, como os fenômenos da arte ligados à cultura e sobretudo a partir do dialogismo. Pesquisam intertextualidades, análise de discursos e vêm estabelecendo aproximações entre estética e comunicação[20]. Para o pesquisador do campo da comunicação, Luis Mauro Sá Martino (2016):
“a perspectiva estética no estudo da Comunicação se volta, para a compreensão do fenômeno comunicacional em sua condição de uma contínua reconstrução do mundo ao redor…. Desse modo, a aproximação entre estética e comunicação procura ressaltar o componente relacional e perceptual da ligação entre os sujeitos, em um contínuo re-definir-se em relação uns aos outros e aos elementos responsáveis por sua constituição enquanto seres em diálogo – nos quais a palavra compreensiva demanda sempre uma condição, do mesmo modo compreensiva, de fala e de escuta (MARTINO, 2016, p. 26)”
Deste modo, levando em consideração os dialogismos em Bakhtin e a comunicação, analisamos os atravessamentos discursivos e intertextuais da “A Actriz A Actriz” de Luís Serguilha. Primeiramente, notamos que, mesmo a partir da irrepresentatividade da ACTRIZ, as vozes que afloram do e no manguezal-poema gestam direções múltiplas. Dentro dos conceitos bakhtinianos estudados vimos que no manguezal-poema, as vozes poéticas dialogam permanentemente com questões e problemáticas da vida no mundo social como: os padrões identitários, o medo da morte, a servidão, os micro fascismos, o poder. A ACTRIZ faz da sua polifonia um grito de enunciado coletivo.
Ao entrarmos em contato com os versos de “A Actriz A Actriz” sentimos que cada enunciado do manguezal-poema abre múltiplos diálogos em um microcosmo de tensões conceituais. O poema-mangue da “A Actriz A Actriz” de Serguilha é repleto de interdiscursos, de intertextos, de conceitos de outrem redesenhados, de perguntas e de críticas realizadas na heteronímias vocais: a ACTRIZ e o PALCO. Esta marchetaria dialógica equipolente capilariza-se por meio de uma conceitualização rítmica e filosófica de enorme envergadura. Tezza (2003), pesquisador e estudioso da dialógica na poesia a partir de Bakhtin, afirma que:
“… o poeta quando escreve não seleciona um sistema abstrato de possibilidades fonéticas, gramaticais, lexicais – seleciona, isso sim, as avaliações sociais implícitas em cada palavra. Para o círculo de Bakhtin, a palavra já entra na arte carregada de intenções, opiniões, traços sociais, com todas as marcas de seu território valorativo (TEZZA, 2003, p.37)”.
Por exemplo, quando a voz poética na “A Actriz A Actriz” aborda o sentido da “prece”, ela modifica-se por meio de novos conceitos afetivos em fricção. A voz poética é transmutadora e multiplamente dialógica: “a prece não se quer salvar, é um vitral-gótico compondo e decompondo o movimento libertário do corpo: com a prece a ACTRIZ se torna maior do que si mesma, a prece nunca está pronta, é uma multiplicação de ideias (SERGUILHA, 2020, p. 135-136)”. É importante ressaltar que a trama poética de Serguilha acontece em um fluxo contínuo. Entretanto, os versos compõem-se por meio de atravessamentos fragmentados, ou por composições textuais que fogem de qualquer racionalismo sequencial e linear.
Neste sentido, por meio de uma “instrumentação cartográfica”, aliada a algumas categorias bakhtinianas, observamos a trama dialógica que atravessa a construção poética serguilhiana. Assim, analisamos alguns dos atravessamentos discursivos deste manguezal-poema e neles observamos: o estilo serguilhiano, dentro da perspectiva bakhtiniana; os “receptores imanentes” ao manguezal-poema; a dinâmica da “polifonia” na ACTRIZ e sua equipolência de vozes; os movimentos de “autor-criador” e os conceitos de “ritmo”, “heroína”, “ato estético” , “ato responsivo-responsável” e “visão estética” para Bakhtin e suas relações com a “personagem rítmica”[21] ACTRIZ de Luis Serguilha (ROLNIK, 1989; BAKHTIN, 2003; BRAIT, 2017).
3. A estamparia discursiva no poema-manguezal
Nesta estamparia poética de Serguilha vemos expressa, pelas forças da ACTRIZ, a multiplicidade do contemporâneo no corpo-artista e as suas relações com o mundo social. Segundo Bakhtin (2016), a complexidade existente na relação social permeia qualquer gênero do discurso[22] antes mesmo da opção pelo seu uso. Permeia também as escolhas, as excitações as interrogações, as problemáticas dos conteúdos temáticos mostradas pelo autor no texto. Para Bakhtin (2016), o texto não é meramente formal. É uma malha discursiva e é através dela que se afirma a potência inconclusa dos movimentos volitivos dos autores.
Segundo Luis Serguilha (2020, p. 382), “o movimento da ACTRIZ, as urdiduras do impensável alçam-se, retomam com novas tonalidades dos acasos, novas violências autopoiéticas”. Tais movimentos provocam encontros de corpos indefiníveis nas tramas poéticas.
Dentro da perspectiva bakhtiniana, a malha de “discursos refletidos”[23] no manguezal de Serguilha acontecem dentro de tecelagens e de mapeamentos dialógicos a partir de conceitos vibráteis e de imagens em movimento. Por vezes, eles ficam imperceptíveis e simultaneamente contagiantes e outras vezes mostram as palavras-chave ou mesmo nos seus possíveis sentidos. Para Bakhtin (2003):
“…em todo enunciado contanto que o examinemos com apuro, levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas ou semiocultas, e com graus diferentes de alteridade. Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos, falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados e totalmente permeáveis à expressividade do autor. O enunciado é um fenômeno complexo, polimorfo, desde que o analisemos não mais isoladamente, mas em sua relação com o autor (o locutor) e enquanto elo na cadeia da comunicação verbal, em sua relação com os outros enunciados (uma relação que não se costuma procurar no plano verbal, estilístico composicional, mas no plano do objeto do sentido). O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal. Tem fronteiras nítidas, determinadas pela alternância dos sujeitos falantes (dos locutores), mas dentro dessas fronteiras, o enunciado, do mesmo modo que a mônada de Leibniz, reflete o processo verbal, os enunciados dos outros e, sobretudo, os elos anteriores (às vezes os próximos, mas também os distantes, nas áreas da comunicação cultural). O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele (BAKHTIN 2003, p. 318-319).”
Luis Serguilha (2020) apresenta na sua trama poética recomposições conceituais afetadas pelas travessias estéticas e éticas de Espinosa, Leibniz, Bergson, Nietzsche, Deleuze, Guatari, Foucault, Artaud, José Gil, Blanchot, Olivier Messiaen, Proust. Por exemplo, como acontece na expressão “girassóis de Van Gogh”. O poeta Serguilha (2020, p. 249) afirma que: “noutra borda do PALCO uma criança leva na sua boca o grito que ataca o mundo, estilhaça o real, faz a ACTRIZ escutar o vazio ao quebrar a flecha eterna com os girassóis de Van Gogh…”. Outras várias expressões com construções semelhantes aparecem no texto, tais como: “telas de Bacon”, “aranha de Proust”, “rouxinol de John Keats”, “pássaro de Brancusi”, “fita de Morbius”, “grito de Artaud”, “turbulências de Turner”, ou o “fractal de Mandelbrot”.[24]
4. Estilo para Bakhtin e o poema-mangue laharsista
Bakhtin afirma que o estilo composicional dos autores é permeável ao contexto do mundo social ao qual o discurso toma parte. O pensador advoga que a relação com o sentido encarnado na palavra é sempre dialógica, pois o ato de compreensão já é dialógico. Nas palavras do filósofo russo:
“Linguagem e estilo se esclarecem mutuamente. Há a relação com a coisa e a relação com o sentido encarnado na palavra ou em algum outro signo. A relação com a coisa (em sua pura materialidade) não pode ser dialógica (ou seja, não pode assumir a forma da conversação, da discussão, da concordância, etc.). A relação com o sentido é sempre dialógica. O ato de compreensão já é dialógico (BAKHTIN, 2003 p.350)”.
Serguilha trabalha com elementos estilísticos singulares do Laharsismo[25]. O seu texto traz uma mistura compositiva de forças visuais dentro e fora da escrita, intensificando os vários ritmos de leitura: há uma pintura feita por pontuações, grafias, negritos, caixas altas, travessões, pausas, silêncios, parênteses, distâncias e vazios que criam singulares entoações. A leitura no poema-manquezal transmuta-se em um grande encontro sígnico. Entrar na leitura do estilo serguilhiano é sentir tempos coexistenciais, tempos puros, tempos delirantes. É jogar e compor no caos. É sentir as musicalidades. É “re-existir” e sobretudo criar encontros e cruzar mapas. É estar dentro do acontecimento.
Luisa Monteiro, dramaturga, ensaísta, escritora e professora na ESTC – Escola Superior de Teatro e Cinema afirmou na ciranda de apresentação de “A Actriz A Actriz” que:
“…Serguilha é o escritor-performer, que é também a ACTRIZ em palco… abre as cortinas da falha e a falha como acontecimento… Ler essa obra é como assistir a um longo espetáculo teatral, assistir ao escritor em cena no ser-pensamento-em-atuação. Torna-se dentro da sua essência presente um ato performático da escuta e do corpo, todo ele ao longo das 1.040 páginas e escarificado pela loucura (MONTEIRO, Luisa. Trecho retirado de sua participação na ciranda de apresentação de A Actriz A Actriz em outubro de 2020)[26]”
Mas a leitura da “A Actriz A Actriz” é desafiadora. Ela é uma aventura cruel, na qual nos sentimos acompanhados pela voz poética de uma geografia imperceptível, insituada, dupla, invariável. Esta voz impulsiona a leitora ou leitor a uma proliferação de diferenças de misturas, de mutações, de sintomas, de estranhamentos que provocam em nós uma “pluralidade de sensações”. O pensador russo diz:
“… a importância e a intensidade dessa fase expressiva variam de acordo com as esferas da comunicação verbal, mas existe em toda parte: um enunciado absolutamente neutro é impossível. A relação valorativa com o objeto do discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado. O estilo individual do enunciado se define acima de tudo por seus aspectos expressivos (BAKHTIN (2003 P. 308).”
O estilo laharsista de Serguilha cria estes efeitos sinestésicos e aciona dicionários que fazem variar o mundo. O estilo serguilhiano é tomado pelo espírito brincalhão a se dedicar à tarefa de vozear os complexos afetos em direção à criação de novos modelos de subjetividades. Para o filósofo russo, o texto acontece em resposta e no diálogo com discursos presentes no mundo social. Bakhtin rompe com a incomunicabilidade entre o mundo da cultura e o mundo da vida. Entretanto, a comunicabilidade entre estes mundos não significa a conservação da necessidade de comunicabilidade, pelo contrário. Diálogo para Bakhtin não é consenso, mas a reflexão e a refração dos múltiplos dissensos nos discursos que atravessam um texto por meio da heteroglossia dialogizada. (FARACO, 2017). São estes dissensos problematizados que escutamos das vozes poéticas no manguezal-poema.
Neste sentido, o livro de Serguilha traduz esta complexidade dialógica bakhtiniana. É por causa dela que compreendemos quando as vozes poéticas de “A Actriz A Actriz” se propõem a romper com a necessidade de uma comunicabilidade representativa e identitária que é diminuidora da potência vital dos entes (MOSÉ, 2018). No mínimo, a ACTRIZ, com os discursos sintomatologistas que a atravessam, promove um questionamento, a partir da sua manifestação real (o poema-livro-manguezal). A ACTRIZ parece compreender que existe um mundo fora dela ao qual as suas posturas multiplicam quando dialogam, sendo responsivas aos acontecimentos. A trama de Serguilha, na perspectiva bakhtiniana, teria como “dobra de pensamento” a real problemática da força da vida artista no corpo social do contemporâneo. Nas palavras do poeta: “a ACTRIZ destrói completamente a representação: ELA é quase um pensamento, é quase-um-ponto-de-vista. ELA é mais dilatada do que o real: é uma linha sensível de desumanização (SERGUILHA, 2020, p.492)”.
É pelas fricções e contrastes refratados no texto serguilhiano que “A Actriz A Actriz” restaura o contágio ético entre a existência de um corpo anorgânico afetado e a estética envolvida pelo pensamento intensivo. Assim, estamos perante uma personagem-rítmica ACTRIZ atravessada pelo conceito de “cuidado de si”[27] de Foucault (1985, 2006).
5. Receptores imanentes à “A Actriz A Actriz”
Ao dialogarmos a partir destes conceitos bakhtinianos, podemos observar alguns dos “receptores imanentes” aos atravessamentos discursivos na trama de “A Actriz A Actriz”. O “receptor imanente” para Bakhtin não é o leitor. Trata-se da responsividade imanente que permite à autoria criadora transpor para o corpo da obra as manifestações do coro de vozes (FARACO, 2017, p.44).
As vozes poéticas conceituais no manguezal-poema de Serguilha recriam-se permanentemente por meio de diálogos com receptores afetivos filosóficos (imanentes) que envolvem continuamente o manguezal da ACTRIZ: Nietzsche, Espinosa, Deleuze, Guattari, Leibniz, Bergson, Foucault, Walter Benjamin, entre outros. Além disso, há um outro tipo de intersubjetividade imanente. Trata-se de espíritos acósmicos como os de Artaud e Blanchot aos quais a “autoria-criadora” concede expressão pelo discurso direto nas epígrafes do manguezal-poema (SERGUILHA, 2020, p.07).
Para aqueles que não encontram-se nos contextos dos “receptores imanentes” citados nos parágrafos acima, o livro-manguezal-poema ou é um alerta, ou é amedrontador, ou é sedutor ao limite, ou é incompreensível, ou é imperceptível, ou é insituável, ou é extremamente problemático. Encontramos, então mais um “receptor imanente” que são aqueles para os quais o desamparo aparece e intensifica-se através de uma estética do quase indecifrável. Assim, para estes, a ACTRIZ-manguezal desvia-se de uma comunicação presa a uma linguagem determinada e reduzida às semióticas da significação. O texto ataca tanto a necessidade de comunicabilidade quanto a “comunicabilidade da necessidade”[28] . Ou seja: aquela forma de linguagem aprisionada e aprisionante, como já a criticava Nietzsche em “Para além do bem e do mal” no aforismo 268 (MOSÉ, 2018).
6. Autor-criador da “A Actriz A Actriz”
Outro aspecto dos dialogismos que observamos nesta análise de “A Actriz A Actriz” é a maneira como a “autoria-criadora[29]” constrói a sua relação dialógica na escultura da sua heroína. Ou seja, a relação “estética axiológica-volitiva” estabelecida com a ACTRIZ, o seu plano de imanência que é o PALCO e o contemporâneo, a partir do afastamento da visão e dos movimentos do “autor-criador”. As reflexões sobre a autoria encontram-se presentes na maior parte dos trabalhos de Bakhtin e de alguns pensadores de seu Círculo como Medvedev e Voloshinov[30].
O “autor-criador” é uma problematização. Nas várias fases dos estudos de Bakhtin, o conceito foi ganhando novas proporções em direção ao “dialogismo” e que sempre estiveram intimamente relacionadas com seu pensamento ético-filosófico. A “autoria-criadora” na criação estética, para o pensador russo, implica uma ética sobre a vida, conectando a arte e alteridade.
Bakhtin nos questiona: em qual enunciado há uma face e não uma máscara? Isto não quer dizer que a autoria seja mascaramento. Para ele, é máscara poque autorar é assumir uma posição axiológica de fora; mais uma posição volitiva de dentro da obra e mais outra com relação aos personagens e conceitos. A “autoria-criadora” é um movimento de deslocamento de si mesmo para outras vozes em transmutação: as vozes poéticas, as vozes das personagens rítmicas e as “vozes sociais”. O pensador russo, a exemplo de outros estudiosos da linguagem, estabelecia uma separação entre o “autor-pessoa” (o artista, escritor)[31] e o “autor-criador”. Para Faraco (2017, p. 38), este último seria constituinte do objeto estético e o “pivô” que “sustenta a unidade do todo esteticamente consumado”.
O vínculo entre a estética e a ética na obra de Bakhtin pode ser ligado pelo conceito de “excedente de visão”. Para o filósofo russo, os seres humanos, assim como o “autor-criador”, contariam com um “excedente de visão” que lhes confere o afastamento necessário para concluir esteticamente o outro, mas nunca a si mesmos. Ou seja, o viver acontece no devir o que não permite a construção prévia do sentido da vida. A vida acontece por meio de um “ato ético responsivo e responsável” e “sem álibi” no devir (BAKHTIN, 2010). No ato estético, o “autor-criador” exerce similarmente algo dentro deste conceito do “ato responsivo responsável”.
Na estética verbal do manguezal-poema, o outro para o “autor-criador” é apresentado por meio das vozes das personagens rítmicas e da “heroína”, a ACTRIZ. Nas palavras de Bakhtin (2003 p. 97), “posso justificar e concluir esteticamente o outro, mas não a mim mesmo”. Para criar esteticamente, foi preciso que a “autoria-criadora” olhasse para a ACTRIZ de fora. E esse olhar de fora que dá ao “autor-criador” (que, obviamente, não se confunde com o “autor-pessoa”, Luis Serguilha) um “excedente de visão” e uma potência de escolhas que lhe permitem dar “acabamento estético” à “heroína” dentro do mangue-poético.
Assim, o manguezal “espacial da personagem” traduz o acontecimento estético cronotopicamente situado na trama de “A Actriz A Actriz”. O acontecimento estético e não o objeto estético corresponde ao ato criador traduzido na linguagem. Para o pensador russo, cronotopo seria a maneira pela qual o tempo pode ser focalizado como uma dimensão do espaço, presente no posicionamento da “heroína” dentro do manguezal, sempre em relação dialógica, e responsiva às questões sincrônicas que a atravessam. Bakhtin inova tremendamente ao propor que o” autor-criador”, no plano de composição da trama e na sua relação com as vozes, recorta e cola elementos do plano do mundo da vida. Na marchetaria bakhtiniana, há um processo de “responsividade permanente” porque Bakhtin nos propõe a criação de novos valores que são assimilados dentro das forças axiológicas, como é o caso do manguezal poético da ACTRIZ, no qual, aqui agora surgem forças ônticas que intensificarão o conceito de “heroína”. Para Bakhtin, o “autor-criador” materializa a relação estético axiológica entre a “heroína” e o seu mundo (o dela). É como se esta maestria do “autor-criador”, dentro do manguezal-poema de Serguilha, se autonomizasse e observasse as personagens rítmicas por meio de variações afetivas: com estranhamento, com simpatia, com ironia, com crítica, com distância, com proximidade, com alegria, com amargura, com crueldade, etc. Esse posicionamento axiológico-afetivo é o que Bakhtin afirma que dá ao “autor-criador” a força singular para se envolver nas multiplicidades estéticas do manguezal. Portanto, para o autor russo, todo ato do pensamento se move numa atmosfera axiológica intensa de indeterminações responsivas volitivas (FARACO,2017 p. 38, BAKHTIN, 2003).
Notamos que o “autor-criador” no manguezal poético da “A Actriz A Actriz”, ao invés de buscar a unidade, apresenta sua construção por meio de aglomerados de singularidades. Reforçando assim, mais uma vez, o seu diálogo com o conceito de Bakhtin de indeterminações responsivas volitivas. Porque estamos perante a movimentos volitivos, desejantes. Fica clara também a admiração da autoria criadora do manguezal-poema pelas forças da vida e do mundo que envolvem a ACTRIZ. A “heroína” se torna uma personagem rítmica conceitual que é nuançada pela posição axiológica do “autor-criador”.
Ressaltamos que a ACTRIZ de Serguilha é uma “heroína” como conceitua Bakhtin. Mas ela não está submetida pela “autoria-criadora” a emitir julgamentos sobre a sociedade. Contudo, ela é imensamente afetada por meio de tendências. Ela tende a uma postura volitiva que a arremessa para os afetos que a libertam dos modelos estipulados pelas representações identitárias, por comportamentos assujeitados e pelo status quo. Essa tendência nos é perceptível a partir da entrada no texto de diálogos sobre a queda, a prece, o homem, a voz, o teatro, a dor, a arte, o pensamento… É uma construção da “personagem rítmica” pela força do avesso e pelo irrepresentável. A heroína ACTRIZ serguilhiana afeta e é afetada pelos conceitos compositivos, pelos encontros abertos ao mundo incomensurável. Seu corpo é afetado pela “afirmação do amor fati” que “se descentra em ensarilhados pontos de vista ampliando os limites corporais” (SERGUILHA, 2020, p.83/84). Na trama poética, Serguilha (2020, p.453)) afirma que “a ACTRIZ é uma força cruelmente afectiva que resiste à morte e à vergonha”.
As vozes poéticas do “autor-criador” nos apresentam uma ACTRIZ subversiva, plena de tempos acronológicos, quando a sua inocência é um tremendo vetor criativo. A relação da ACTRIZ serguilhiana com as temporalidades coexistenciais compõem singularmente as personagens rítmicas dentro do corpo-pensamento-PALCO-artista. Neste sentido, a ACTRIZ enfrenta o “problema da grande temporalidade”[32] apontado por Bakhtin
Assim, para Bakhtin, o “autor-criador” é uma força imanente ao objeto estético. O poeta trabalha as linguagens do manguezal quando está fora delas. Estas vozes criativas acontecem dentro de outras vozes que agem como um maestro que direciona as palavras para as vozes alheias e entrega a construção do todo artístico a uma voz singular, o primeiro violino, ou seja, a “heroína”. Estamos diante de mais uma outra problematização estética que contagia a ACTRIZ serguilhiana.
7. Polifonia no corpo do manguezal-poema
Na “A Actriz A Actriz”, a estética plurivocálica e o que Bakhtin posteriormente chamou de polifonia tem a ver com as múltiplas vozes independentes e equipolentes que atravessam o mangue-poema. O conceito de polifonia surgiu e foi usado sobretudo a partir dos estudos de Bakhtin dos romances de Dostoievski.
Para Bakhtin, há polifonia quando o “autor-criador” confere às “personagens rítmicas” vozes equipolentes e desejantes capazes de se singularizarem dentro do acontecimento estético. O espaço de fora da ACTRIZ e com o qual ela dialoga é o intensivo do contemporâneo. São as vozes duplas, presentes na composição problemática do mundo e contaminada por inter-relações dialógicas. O “autor-criador” cria distâncias da “heroína” (“excedente de visão”) de maneira que os pontos de vista dela, expressos no manguezal-poema, se tornem indeterminantes e inconclusivos (BEZERRA, 2017).
Na estética da “A Actriz A Actriz” de Serguilha, notamos polifonia em duas camadas compositivas. A primeira acontece no território dos enunciados, onde somos confrontados com a multiplicidade das vozes que se recriam artisticamente a partir do pensamento singular. A ACTRIZ constrói o seu corpo-artista por meio de afetos gerados por um tempo crônico que afirmam a diferença na vida. Estas vozes aparecem “refratadas nos discursos” sobre e da ACTRIZ com as intersubjetividades[33] imanentes que são os pensadores de uma agoridade intensiva Foucault, Walter Benjamin, ou mesmo Espinosa e Nietzsche. Por outro lado, quando surgem as vozes estéticas-éticas da ACTRIZ no mangue poético, simultaneamente, advém as problemáticas do racionalismo, dos binarismos e que são movidas pelas estruturações, medos e correntes do tempo cronológico. Estas vozes intercorrem as críticas ao homem, ao poder e às formas de dominação da representação. Assim, vimos que a equipolência de vozes se faz presente na ACTRIZ e no manguezal-poema.
A segunda camada polifônica se dá no território da enunciação, onde percebemos no manguezal-poema serguilhiano o combate estético de várias vozes. Primeiro encontram-se as vozes das forças ativas e expressivas da ACTRIZ. E em segundo plano surgem as vozes de forças reativas presas a identidades fixas do corpo identitário, mutilado pelo social. Bakhtin as denomina forças centradas ou unificais como centrípetas do discurso. Quando as forças apresentam pontos de vistas equipolentes, o discurso é tomado de forças centrífugas. As forças centrífugas expressas no manguezal-poema da A Actriz A Actriz reforçam o conceito de polifonia bakhtiniana.
8. Ato estético na obra e o acontecimento da ACTRIZ
Bakhtin ao estudar o ato estético verbal, afirma que ele acontece em relação a vários discursos. Segundo Faraco (2017, p. 37), Bakhtin assevera que “o ato estético pressupõe um distanciamento em relação ao objeto (ao “herói”) e o processo do ato é o que o faz existir. Ao analisarmos o manguezal-poema de Serguilha, no seu movente ato estético encontramos atos enunciativos distintos. Cada ato no manguezal-poema apresenta uma entoação crítica que vai ao encontro de possíveis cenários.
Para Serguilha (2020): “ACTO que é o intensivo compositor de forças que atravessam o PALCO e assimilam algo singular da ACTRIZ”. A composição é atravessada por atos estéticos (enunciativos) em quaterno. Observamos quatro grandes atos de fala-estéticos-éticos em fragmentos, separados no manguezal por páginas moventes negras. Denominamos estes conjuntos dispersos, unidos pelas páginas negras, de cenas, apenas a título de análise. No total, estão dispostas no livro 32 cenas, todas separadas em outros micro fragmentos compondo um manguezal de textos. Na “A Actriz A Actriz”, notamos que a maestria composicional da “autoria-criadora” agrega múltiplas cartografias com forças “axiológicas” envolvidas pelo corpo-artista.
Na cartografia que realizamos do manguezal-poema serguilhiano, sentimos que os atos estéticos se intensificam por meio de angulações perceptivas onde a ACTRIZ acontece dentro de C-nãos envolvidos por um teatro arena de leituras caleidoscópicas serguilhianas. Cada espectador assimila um vértice-leitura onde o PALCO atinge uma visualização de 360 graus. Estamos perante um ponto de vista poliédrico e problemático.
ATOS ESTÉTICOS NA “A ACTRIZ A ACTRIZ”
ATOS ESTÉTICOS |
ACTO apresentação |
ACTO questões |
ACTO fricções |
ACTO Refrão/ improvisata |
Recursos do autor- criador |
Introdução sobre o surgimento da ACTRIZ gerada pelas mães no caos. Predominância do emprego do verbo haver trazendo impessoalidade. Uso das composições verbais ser-acontecer-advir para apresentação do cenário do caos do sensível (corpo, palco, movimento e transtemporalidades). Reconceitualização da prece. |
Verbos na terceira pessoa e no infinitivo. A voz narrativa questiona e crítica rigorosamente a estruturação do e no homem. Apresentação do cenário manguezal do mundo. |
Verbos na terceira pessoa e no infinitivo. Criação de ritmos entre a ACTRIZ e o PALCO. Tensões entre o PALCO o corpo e a ACTRIZ. Tensões entre o pensamento o vazio e o esquecimento. Tensões entre o tempo, o silêncio e a distância. Tensões entre as ciências e as artes. |
Na primeira pessoa do singular, a ACTRIZ toma a palavra de modo ativo e fala a partir de um discurso estético. Depois, em terceira pessoa a voz poética, que pode ser a da ACTRIZ intensifica as problemáticas do AMOR e do desejo dentro das semióticas do PALCO. A ACTRIZ questiona inesgotavelmente o seu corpo dentro de uma memória-mundo. |
Cenas |
5 cenas |
4 cenas |
15 cenas |
8 cenas |
Receptores imanentes |
Corpo, ritmo, contemporâneo, pensamento, signos, artes, conceitos, tempo ciência, natureza. Afecções: Nietzsche, Espinosa, Deleuze, Leibniz, Bergson, Foucault, Blanchot, Artaud, Beckett, Jackson Pollock, Jean Genet, Turner Bacon, Línguas, Transbarroco. |
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Localização na obra |
início até a página 150 |
página 153 até a página 252 |
página 413 até a página 867 |
página 871 até a página 1040 |
Fonte: elaborado a partir decartografia da autora do manguezal-poema “A Actriz A Actriz” de Luis Serguilha
9. O corpo irrepresentável da ACTRIZ
A ACTRIZ para Serguilha (2020) “constrói-se quando deixa de se visualizar, é indecidível”. A “autoria-criadora” do manguezal-poema desconstrói a representação da ACTRIZ, enquanto sujeito psicológico, biográfico e pessoal.
Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, Mikhail Bakhtin faz um estudo aprofundado dos dialogismos e discursos na obra de François Rabelais (BAKHTIN, 1987). Os livros deste autor medieval Pantagruel e Gargantua foram considerados obscenos pelos pensadores eruditos da época e que os caracterizaram como pertencentes ao estilo popular, carnavaleco e grotesco. Posteriormente, estes livros foram considerados como críticos ao sistema religioso do período.
No entanto, segundo o pensador russo, estes livros de Rabelais, mereciam um estudo dialógico mais aprofundado porque as imagens do corpo grotesco ressaltavam a ambivalência da realidade medieval, expondo um popular que foge da seriedade e da visão sombria que é atribuída ao período. Não se tratava somente de uma sátira de Rabelais ao pensamento de seu tempo, mas uma forma de expressar o corpo social apagado pelos relatos históricos dominantes. O corpo dos gigantes protagonistas das obras de Rabelais é aberto ao exterior e expõe bem mais do que o obsceno ou uma crítica ao poder da época, mas revela uma Idade Média que se liberta dos discursos dominantes sincrônicos e diacrônicos. [34]
O corpo das personagens de Rabelais expõe seus excessos, suas protuberâncias, seus orifícios avantajados. O corpo grotesco se contrapõe à imagem clássica das proporções do corpo, um corpo idealizado. Também o baixo corporal aparece realçado como princípio da vida, da saúde, da renovação. Na obra de Rabelais, segundo Bakhtin (1987), as partes do corpo em contato com o mundo e com o outro é que são valorizadas. O corpo gigante foge do apequenamento do corpo em relação à alma e o corpo grotesco é admirado como circulação e movimento. O corpo é atravessado pelo mundo na medida que se alimenta dele nos banquetes que ocorrem nas principais fases da vida. E esse corpo devolve o alimento ao mundo em forma de excrementos e de urina, a circularidade da vida em constante renovação.
O surgimento do corpo grotesco e colossal, a sua abertura para o mundo e a crítica ao mundo social aparecem também nos “discursos” que atravessam os “dialogismos” deste manguezal-poema de Serguilha. É o manguezal-poema que faz pensar o irrepresentável e o impensável do corpo. O manguezal-poético na “A Actriz A Actriz” cria no leitor novas maneiras de sentir, de viver, de ler, de pensar. Porque “os fluxos agramaticais do corpo da ACTRIZ” arremessam-nos para expressões afetivas, para transcodificações, para novos personagens rítmicos, para novas estilizações intensificando o sensível e os conceitos. A leitura percorre ininterruptamente uma geografia “indecidível” e sem mensurações porque existem vozes que repercutem singularmente dentro do manguezal-poema.
O destaque que Serguilha concede ao corpo-da-ACTRIZ é imenso e “desmesurado”. As vozes poéticas resultantes de uma força corporal colossal criam atravessamentos múltiplos. Elas estão em vazamento sígnico. É como se a ACTRIZ estivesse simultaneamente excitando os ritmos da leitura, fizesse a pergunta espinosana: o que pode o corpo e reafirmasse a sua potência criativa.
O corpo gestual da ACTRIZ dança nos ritmos geradores de vida e se constitui numa linha abstrata. O corpo nega o vicejo do organismo, não nomeia, evita o espelho identitário. O corpo-da-ACTRIZ é híbrido não aceita os princípios determinantes. Os corpos-palcos na ACTRIZ acontecem como forças anorgânicas e problemáticas. Como diz Serguilha, o manguezal da ACTRIZ é como uma “trama de areia”, um entrelaçamento contínuo de fios, escapando à consciência julgadora e classificadora. A partir do hibridismo do corpo, Serguilha encontra vários pontos de fuga na contemporânea tensão entre identidade, múltiplo, diferença, vazio, distância, ritmo e silêncio. A barga da linguagem poética do manguezal-poema serguilhiano impulsiona um corpo indefinível, indizível, inaudível, intraduzível, provocando rupturas na estrutura do social por meio do corpo-pensamento-artista.
No manguezal-poema estamos perante um “corpo paradoxal”[35], mesclado por dobras barrocas e por vizinhanças estéticas indiscerníveis, onde as forças expressivas se movimentam incessantemente. O corpo da trama da “A Actriz A Actriz” é o indizível, mas dito pelas vozes do manguezal-poema em “gritos insonoros”[36]. O corpo dança o inaudível por meio de ritmos alucinantes. De tão híbridas composições, o corpo-ACTRIZ-PALCO atinge um nível de inconclusibilidade excessiva e expressiva. O corpo atravessa sendo atravessado por “discursos éticos” que vão compondo o real aliado à estilização.
A palavra corpo se faz atravessar pelo manguezal-poema e perpassa uma crítica aos discursos capitalísticos dominantes e ao consumo de uma imagem representativa de corpo. Como afirma o poeta: “O corpo-da-ACTRIZ afecta-se afectando ao desplatonizar-se, escapa-se a si próprio, não se actualiza, intervala-se, contagia-se sobre outros corpos em relação com a sintomalogia do PALCO” (SERGUILHA, 2020, p.432). Neste sentido, o “corpo-mosaico-da-ACTRIZ” é “receptor de partituras da desrazão” e acontece “fundindo vida com refracção metamórfica”. Em uma crítica aos corpos disciplinados ou rebaixados pela sociedade de controle, a voz poética da ACTRIZ afirma:
“… o CORPO DA ACTRIZ não vive o vivido, nem se alimenta do adormecido legislador, nem da salvação do homem porque é uma tragicidade que se distrai, reaviva, exulta, é uma composição de encontros nucleares arremessadores de dados dentro de um vitral-gótico (abrir a vida com milhares de almas coexistentes, com novas contingências, com o impossível em exalçamento) (SERGUILHA, 2020, p.37).”
Para o filósofo Vladimir Safatle, “uma das características mais determinantes da nossa época é ter elevado o corpo à condição de dispositivo central da política”. Neste sentido, percebemos que a ACTRIZ dialoga com um discurso que combate o que Safatle afirma ser uma convocação publicitária para “transformar o corpo em espaço de manifestação da autonomia, espaço de afirmação de um projeto de estetização de si, de construção plástica e performativa de novas identidades (SAFATLE, 2008, p. 147)”. Esta “plasticidade” estaria vinculada a uma retórica da dissolução do “eu” como unidade sintética e a sua reconstrução, posicionando o indivíduo neoliberal enquanto administrador de si (tal qual uma empresa) e do seu corpo, enquanto matéria plástica a ser trabalhada a partir do ditames da indústria do consumo. Esta disponibiliza meios de atualização para a aquisição de padrões identitários revestidos de atributos cosméticos, nutricionais, diagnósticos e de estilos de vida de pessoas jovens, medicáveis e saudáveis. A oposição no mundo social a estes estilos está nos discursos sobre a doença e a morte, provocando afetos políticos como o medo.
O medo do corpo doente é também fortemente combatido pelo discurso da ACTRIZ que afirma um corpo que “quebra o medo” sobretudo o medo da morte a partir de outros recursos que se desviam destes propostos pelo mercado. O corpo combativo da ACTRIZ se reconstitui das mutilações e se refaz pelo impensável, delirando até gerar novas dimensões de tempo. A morte se dissolve na porosidade do manguezal-poema-corpo. Poque o corpo da ACTRIZ é um corpo criador, artístico, insano, aliado da dor, que testemunha e grita o corpo-vivo. A ACTRIZ desterritorializa-se da morte. Ela nunca menciona a palavra doença. Ela “desagrilhoa-se da DOR por meio da própria DOR que provoca mutações no PALCO ao evitar as sentenças da consciência” (SERGUILHA 2020, p.28).
O corpo da ACTRIZ verte-se no manguezal subversivo do poema reafirmando a vida pela arte e combatendo tudo aquilo que provoca morte[37]. É um corpo-pensante grotesco e singular nas suas aberturas ao mundo. Mike Featherstone (2000, p.4), pesquisador da cultura do consumo no contemporâneo, afirma que “no interior da cultura do consumo, o corpo sempre foi apresentado como um objeto pronto para transformações”. Na contramão destas lógicas identitárias e representativas, a ACTRIZ ativa o pensamento imprevisível por meio do corpo irrepresentável que a extravasa. Existe uma transbordância sígnica e uma estética do excesso. O manguezal-poema de Serguilha traz um combate estético. Então, há uma colossal-vida-corpo em mudança.
10. A heroína: uma ACTRIZ sem rosto
Para o Círculo de Bakhtin os processos criativos de construção de sentido, além de refletirem o mundo, também refratam – ou seja, não somente reproduzem o mundo, mas são a remissão de um mundo múltiplo e heterogeneamente interpretado. O ato criativo envolve um complexo processo de transposições refratadas da vida para a arte.
Notamos este movimento de refração no manguezal-poema “A Actriz A Actriz”. Por exemplo, um modo de mostrar o olhar refratário do “poeta criador” aparece quando a voz poética se refere ao conceito de rosto no texto. Enquanto, dentro da esfera das representações identitárias dominantes, uma atriz seria o exemplo de sujeito reconhecível pelo seu rosto e pelos rostos que representa no palco, a ACTRIZ serguilhiana não tem um rosto reconhecido e ela “se devora como um trágico de si mesma” [38]. Ela flui por uma estética do imperceptível, do anorgânico, do sutil e simultaneamente da “crueldade”[39]. Ela “nunca reconhece a sua própria remigração” é o descabimento do rosto reconhecível (SERGUILHA, 2020, p.483). Trata-se de um rosto transfigurado, rasgado, zurzido, fugindo ao sistema do poder. Os discursos refratados nos atos de falas da ACTRIZ evitam completamente o mundo insaciável de julgamentos. O pensamento-corpo é envolvido por afetos da vida e por desejo e já dentro de um acontecimento expressivo.
Segundo as vozes poéticas do manguezal-poema: “os clichês predominam, porque anestesiaram os sentidos e fecharam o corpo ao impensável”, o homem “fez do rosto o seu mundo fantasmagórico” (SERGUILHA, 2020, p 705).” No PALCO: tudo é “estimulado fora do livre juízo, fora da biografia pessoal, das necrologias: um desvario dançarino constrói um país sem rosto… a marijuana caleidoscópica apaga o rosto com o acaso dos palcos sem regresso” (SERGUILHA, 2020. p 314). Sobre o rosto, Bakhtin (2003) afirma;
“o que na vida, na cognição e no ato, designamos como objeto determinado, não recebe sua designação, seu rosto, senão através da nossa relação com ele: é nossa relação que determina o objeto e sua estrutura e não o contrário; é somente quando a nossa relação se torna aleatória … quando nos afastamos da relação de princípio que estabelecemos com as coisas e com o mundo, é que o objeto se nos torna alheio e fica autônomo (BAKHTIN, 2003, p.26)”.
No manguezal-poema serguilhiano, sentimos esta autonomia mencionada por Bakhtin no trecho acima. O poeta-criador do manguezal-poema afirma que “o PALCO olha para trás, sem o espelho do vivido” e é como se o olhar poético se afastasse em fuga dos discursos identitários do rosto. O olhar poético faz o que a física impossibilita que é refratar a ACTRIZ-outra de dentro do espelho a partir de um rosto irreconhecível. Porque justamente ela pode ser qualquer outro acontecimento ínfimo do corpo, já fora do espelho-poema. A ACTRIZ vai “construir matérias vivas que vararão e fissurarão os rostos que tentam prevalecer no mundo da servidão” (SERGUILHA, 2020, P. 542)”. O olhar do poeta vai “fazendo do corpo da ACTRIZ uma linguagem do crime, da traição, da ética, da paixão que no instante se desvanece e se fortalece (SERGUILHA, 2020, p 662)”.
Desta maneira, o poeta do manguezal-poema enfraquece a imagem do sujeito-rostificado e cria novos espelhamentos por meio das “máquinas germinadoras do PALCO” que “perturbam o remanso dos rostos sociabilizados (SERGUILHA 2020, p 564)”. Nas palavras afirmativas da voz poética:
“a força política-ética do PALCO está na capacidade de produzir o imperceptível na ACTRIZ, de fugir à servidão, ao entorpecimento, despedaçar gigantescas empolas identitárias, securitárias e escapar de um rosto-de-penitências por meio de contemplações larvares, de fugas, de actos renovadores de falas e de exílios: reforçar a vida fora do poder nauseabundo (SERGUILHA, 2020, p 256).”
11. O ritmo para Bakhtin e a ACTRIZ
Ritmo é um conceito que recebe de Bakhtin um sentido peculiar no seu pensamento filosófico. O filósofo retira o termo do senso comum, que entende o ritmo como cadência ou realidade temporal, uma repetição de batidas determinadas nos versos, na marcha, ou na prosa. O pensador russo incorpora ao ritmo um aspecto valorativo e volitivo, que é parte da criação artística (FARACO, 2010). A força da “vida vivida” em Bakhtin é o próprio devir. Então, o ritmo é entendido por Bakhtin como uma sequência axiológica para uma composição estética de vida na obra de arte. Para ele, o ritmo é o movimento singular dentro da obra. Bakhtin retoma do sentido de ritmo as temporalidades heterogêneas e os interstícios que afetam o gesto estético da obra. O ritmo se torna uma força volitiva do “autor-criador” que compõe a trama da arte por meio do acontecimento que intensifica a vida. O ato estético cria o ritmo na trama e este movimento só poderá ser feito pelo “autor-criador” a partir de um gesto amoroso (FARACO 2010, BAKHTIN, 2003).
Para Bakhtin (2003) somente a vida vivida é um devir contínuo a projetar-se para o futuro, estando aberta para as possibilidades e repleta de riscos porque depende de escolhas de tendências que cada um faz perante o movimento da vida (BAKHTIN, 2003, p. 116). No manguezal-poema de Serguilha:
“…a “ACTRIZ apreende, absorve, incorpora o ritmo híbrido do mundo, tenta transcodificá-lo, adivinhá-lo entre infinitas excripturas e incomensuráveis desdobramentos que arrasam o ser-identitário com a força pré-figural mutável, porque o PALCO está em acontecimento-afectivo-cruel (SERGUILHA, 2020, p. 429)”.
12. A visão estética de Bakhtin e o amor na ACTRIZ
Este “acontecimento-afectivo-cruel” na ACTRIZ que Serguilha menciona no trecho da citação acima está em diálogo com o que Bakhtin chama de “visão estética” (BAKHTIN, 2017). Em “Para uma filosofia do Ato responsável”, Bakhtin diz que “o centro valorativo da arquitetônica da visão estética é o ser humano como realidade amorosamente afirmada” (BAKHTIN, 2017, p.127). Para o autor russo: “somente o amor pode ser esteticamente produtivo” e tornar possível “a plenitude da diversidade” (IDEM, 2017, p.129). Trata-se da condição de amar e por isso considerar o objeto belo, daí advém a intensidade da força para abraçar e manter a diversidade concreta do existir, a partir “da arquitetônica da contemplação do mundo construído no ato estético” (BAKHTIN, 2017, p.140).
No último “ato estético” que analisamos no manguezal-poema “A Actriz A Actriz”, o conceito do amor contemporâneo invade o REFRÃO E IMPROVISATA da ACTRIZ. São quase 40 páginas de uma tensão sofisticada e exorbitante entre a ACTRIZ personagem rítmica, as vozes poéticas, os “receptores imanentes” e o leitor ou leitora, arremessando-os para o impensável por meio de um corpo delirante, vibrátil e tremendamente artista. Serguilha (2020, p. 952) diz “as expressões criativas do AMOR dão sentido ao corpo, às estéticas do pensamento, à emergência acontecimental”.
No entanto, não é um amor sentimentalista ou comportamental. Serguilha dialoga, mas não reflete a versões do amor ágape, philia, amor fati ou amor-paixão. A ACTRIZ de Serguilha (2020, p. 955) quer “ser amada diferentemente”. Para a ACTRIZ-manguezal-poema, “o AMOR é uma criação que alcança rastros de intensidades que produzem rupturas, fendas, inquietudes no status quo”. Então é sobre um afeto político que estamos tratando aqui. Um AMOR desperto para as problemáticas que afetam a existência na sua concretude e no acontecimento da “vida vivida” e sem “álibi” como postula também Bakhtin. Estamos diante de uma resposta da ACTRIZ ao desamparo, o afeto político estudado pelo filósofo Vladimir Safatle (2016) no livro “Os circuito dos Afetos; corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo”. O desamparo seria um afeto mobilizador de afetos políticos transformadores, tais quais o AMOR surge na ACTRIZ. O poeta-criador da trama-manguezal-ACTRIZ diz:
“O AMOR não é um fâmulo do intelecto nem da inteligência, é uma força sublevada, revolucionária, indeterminada que capta descodificações afectivas, personagens ritornélicos, é uma vaga friccionada pela vida em experimentação, não tem uma vontade de poder, nem de tomar conta das toponímias porque o corpo é feito de movimentos energéticos, anónimos, não é uma organização, não é uma proficiência da razão, nem uma responsabilidade moral sobre a vida, mas sim, uma afirmação da plenitude das diferenças, uma transfronteira ininterrupta, o corpo é uma composição ética, é devoração-pura que afirma a diferença, evita protótipos de analogias com o PALCO o EU e as suas dicotomias, as suas verdades, as suas justiças, as suas utilidades e as suas vitimizações desaparecem… (SERGUILHA, 2020, p. 959-960)”
Os diálogos a partir da “A Actriz A Actriz” aproximam e relacionam as dimensões éticas e políticas da estética do “cuidado de si”, do pensamento do corpo-artista, da problemática da vida, até a autonomização afetiva envolvida por uma inquietante alucinação, fazendo do desamparo o seu trampolim.
O “ato estético” na construção da ACTRIZ, compreendido pelos seus múltiplos diálogos, permitem-nos reatravessar o campo da política (problema da padronização das condutas identitárias dos outros), a partir da problematização da ética (que questiona incessantemente, quais forças atravessam a ACTRIZ, o PALCO a vida e o nosso corpo).
Entretanto, cabe ressaltar que estamos tratando de uma trama-artista, então o amor se constitui na alteridade-estética porque o poeta também afirma que:
“… estamos dentro de prismas de espaços-tempo onde o AMOR em cada gesto acontece no outro que passa por ele e o faz mergulhar no cristal catalítico do futuro, há um acto de vontade que se amplia e se supera, é a loucura da improvisação ontológica, é a memória vibrátil que lança milhares de almas intensificadoras de um corpo do corpo até o caos dos heterônimos singulares (SERGUILHA, 2020, p.973).”
13. Tema do manguezal-poema para Bakhtin
Os “heterônimos singulares” mencionados acima por Serguilha nos conduzem a pensar um outro conceito igualmente relevante no pensamento de Bakhtin: o “tema”. Para o pensador russo, o “tema” é um estágio superior da capacidade de significar porque é a expressão abstrata (real) de uma situação concreta, enquanto a significação seria a representação. O “tema”, como a palavra, “situa-se fora da alma, fora do locutor e não lhe pertence com exclusividade”, mas é ele quem associa o texto à uma condição real, criando no texto um discurso, enquanto possibilidade de existência (CEREJA, 2017).
No manguezal-poema “A Actriz A Actriz”, o poeta afirma que a personagem rítmica ACTRIZ “confronta as leis da natureza com o seu corpo vesano que combate a morte” (SERGUILHA,2020, p.39). O corpo afetivo da ACTRIZ omite dele todas as palavras conectadas às enfermidades, às vitimizações e à servidão sentimental que são estratégias que enfraquecem a sua potência e que são comuns no mundo social.
Por meio do seus encontros incomensuráveis com o mundo, o poeta foi afetado pela intensa transmutação de um corpo que afirmava e assevera singularmente a vida. A partir de diálogos com a jornalista e escritora Daniella Zupo, a maestria do “autor-criador” foi rigorosamente arremessada para o manguezal do poema. Nas primeiras entradas do poema encontramos: “a ACTRIZ a ACTRIZ (o palco do esquecimento e do vazio) à Daniella Zupo [40].
A “palavra-signo”, entendida como discurso para Bakhtin, se situa “fora da alma” e fora do seu locutor e encontra-se na realidade das problemáticas do mundo social. Assim, a realidade se situa próxima à Daniella[41] e ela ao vórtice do “tema”. O “tema” advém do combate singular pela vida intensiva e expressa a partir do CORPO-ARTISTA, tal qual acontece com Daniella Zupo, mas não restrito a ela, enquanto sujeito pessoal ou biográfico. É importante ressaltar que neste manguezal de conceitos éticos-estéticos serguilhianos, Zupo é citada uma única vez:
“ o teatro rés à expressão, rasga e constrói ritmos delirantes: tonalidades dos hiatos, dos saltos, das asceses emergem nas possibilidades das correntezas videntes: Zupo não perde o contacto com o caos que a atravessa e nunca nomeou quem a escutou, o seu corpo torna-se uma invasão estrangeira, uma susbtancia desmaterializada, uma iluminação profanoadora porque sentiu o colapso regerminante que a fez caminhar no ouvido do virtual dentro das membranas do real … a vida regurgitada pelo fulgor da desbravação…o processo que torna vivo o acontecimento e arquitecta os feixes intensivos da linguagem” (SERGUILHA, 2020, p. 316)
Assim, o manguezal-poema serguilhiano faz emergir o caos puro a partir de uma singularidade já dentro do acontecimento. Alinhados aos conceitos de Bakhtin, entendemos que o manguezal-poema da ACTRIZ estaria nos “forçando” a pensar o corpo e o real no “tema” que é gerador da enunciação. Vemos que há uma realidade abstrata simultânea a essa menção concreta. Surge, então, o “tema” que é: o CORPO-ARTISTA em fuga combativa diante da morte porque é criação permanente de pensamento-vida.
Além desse paradoxo morte-vida, outro duplo trazido pelo dialogismo do “tema” bakhtiniano é a ambivalência. Ela surge, por exemplo, quando a voz poética diz:
“não fujo da DOR porque a vida é o animal indomável que leva a travessia da morte no seu dorso, a morte que já pervagou e nunca advirá, a vida não desvive, dói, é o vital criativo da durabilidade do gesto: a vida não reflecte analogicamente, a vida não é comparável, a vida cria encontros com o impensável que se fortalece por meio da diferenciação que o outro extraiu das suas vértebras (SERGUILHA, 2020, p. 1008)”.
Assim, também observamos na ACTRIZ uma contraposição à ideologia retórica do consumo sobre o corpo[42]. Mas submergem pelas várias vozes e pelo dialogismo da ACTRIZ outras possibilidades de pensamentos-corpos, não orgânicos, ressuscitados a partir da diferença. As “vozes sociais” refratam os gestos do corpo ético, do corpo dançante, do corpo afeCtivo, do corpo pensamento e do corpo-combativo-vivo.
Na estética do manguezal-poema serguilhiano, há uma emergência para pensar e para defrontar os riscos, os atravessamentos e as problemáticas da vida. É um enfrentamento do caos para o corpo criar novos modos de pensar, novos modos de sentir, novos modos de ver, novos modos de recriar, fortalecendo as singularidades e o “cuidando de si”. Entendemos, a partir desta análise dialógica, que é sobre este acontecimento, entre tantos movimentos de duplos que a composição inventiva da “autoria-criadora” de Luis Serguilha se refere. Entre os duplos estão: o corpo, o pensamento, a morte e a liberdade que ficam face-a-face, poque a vida ficou eternizada na criação estética desta personagem ACTRIZ (força rítmica). A ACTRIZ propõe, deste modo, possibilidades de escolhas ou de curas, ou até mesmo a palavra que se torna, em si, o indizível. Porque a ACTRIZ pode se tornar visível a partir de uma OUTRA imagem: a da LOU-CURA.
(In)conclusões e diálogos abertos
Dentro do pensamento crítico bakhtiniano, na ordem do ser, a liberdade humana é relativa e enganadora. Já na esfera do sentido a liberdade é absoluta, uma vez que o sentido nasce do encontro e o encontro recomeça eternamente. O sentido seria a força libertária e a pesquisa dialógica uma de suas práticas. Dialogando com a potência dos sentidos, observamos que para o poeta laharsista, Luis Serguilha:
“…a ACTRIZ esponja imanentemente a ética-da-natureza que a faz recomeçar sempre de novo, fricciona as vozes nas dinâmicas dos ecos das afecções que simultaneamente perfuram, envolvem as potências responsáveis pelo pensamento agramatical, rupturante, ultrapassador de consciências (novas relações com o PALCO (embriões turbilhonares): catalisar o singular da contranatureza delirar no vazio caleidoscópico, na hesitação compositiva que guilhotina a estrutura euística com a liberdade da dor do inventivo (SERGUILHA, 2020, p. 407)”
Esta “liberdade da dor do inventivo” é notada na análise dialógica de “A Actriz A Actriz”, cuja escrita é responsiva à esta libertação. Como o sentido é livrador da linguagem, também pode desviar a comunicação das lógicas dominantes e asfixiadoras. Este artigo é somente uma brecha estética, uma abertura potencial para outros tantos diálogos éticos, possíveis e livres. Esse colossal manguezal-poema de Serguilha poderá se religar fortemente com outros conceitos filosóficos, poéticos, dramatúrgicos, artísticos. As suas conexões são intermináveis, porque ele está dentro de um “contemporâneo intempestivo”.
A ACTRIZ de Luis Serguilha acontece ao ser lida dentro da força da duração e do acontecimento-existência e em uma perspectiva de alteridade como afirmava o pensamento filosófico e ético de Bakhtin. (In)concluímos este artigo com a citação do filósofo Vladimir Safatle que reitera que: “é possível dizer que um acontecimento contingente é exatamente aquele que traz o não percebido e o incomensurável à cena. Incomensurável, não por ser infinitamente grande ou pequeno, mas por ser infinitamente outro (SAFATLE, 2016, p. 313)”. O desmesurado manguezal-poema de Serguilha é o OUTRO da diferença e do INTENSIVO, como diz o poeta “e o movimento se torna um imenso manguezal’ (SERGUILHA, 2020, p.57).
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Rotas de rodapé
[1] (SERGUILHA, 2020, p. 1024)
[2] O evento foi organizado pelo escritor e ensaísta, Daniel Osiecki da Kotter Editorial em outubro de 2020. Participaram da ciranda de crítica literária de “A Actriz A Actriz”: María Ángeles Pérez López (poeta, ensaísta e professora titular de Literatura Hispanoamericana da Universidade de Salamanca); Ana Maria Haddad Baptista (ensaísta, filósofa e professora Universidade UNINOVE); Paola Zordan (artista plástica e professora universitária da UFRGS); Luisa Monteiro (dramaturga, escritora, ensaísta, professora da ESTC – Escola Superior de Teatro e Cinema); Abreu Paxe (poeta, ensaísta e Professor Universitário: ANGOLA ISCED); Thiago Arrais ( encenador e Professor U. COIMBRA e IFCE ); Daniella Zupo (escritora, jornalista); Marcelo Ariel (poeta, ensaísta, cineasta). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcdbdIlFuSg Acesso em: 31/01/21.
[3]O LAHARSISMO é a estética criada pelo poeta português, escritor e curador de arte, Luis Serguilha. O conceito é inspirado na palavra lahar que significa avalanches vulcânicas em Javanês. Fragmentos escritos por Serguilha sobre a estética do LAHARSISMO estão disponíveis em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/guara/article/view/3917 Acesso em: 31/01/2020.
[4] Sobre transbarroco, vertente hiberoamericana do neobarroco. Disponível em: http://www.revistazunai.com/ensaios/haroldo_de_campos_transbarroco.htm Acesso em: 31/01/21.
[5] Vico, Giambattista – Princípios de uma ciência nova – São Paulo, Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores)
[6] Para Jorge Luis Antonio, “Serguilha oferece um projeto de leitura que é um desafio. E há momentos em que o leitor se sente perdido numa floresta de signos e só encontra o caminho dos significados se selecionar e combinar palavras e dar significado pessoal a elas (ANTONIO, 2015)”. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/guara/article/view/4733 . Acesso em: 31/01/2021.
[7] Palestra concedida por Luis Serguilha intitulada Ritmo, vazio, pensamento: corpo-poeta em setembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kORGXp_AkSk Acesso em: 31/01/21.
[8] Epígrafe de Maurice Blanchot, na abertura do manguezal-poema, “A Actriz a Actriz”;
[9] Proust denomina mundos possíveis, as essências, os afetos de almas. Cada um tem uma multidão indefinida de almas. O conceito de Proust foi retomado por Deleuze. O pensador da diferença aponta o fato de ser a literatura a experiência de “gaguejar na própria língua”, produzir mundos possíveis no campo da arte. Muitos comentadores literários ao analisarem a obra de Serguilha afirmam que ele exercita este “gaguejar na própria língua”. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/guara/article/view/4734/2659. Acesso em 31/01/21.
[10] É Doutorando em Psicopedagogia, pela Pontifícia Universidade de Salamanca, professor de Literatura Comparada, escritor, crítico literário, membro honorário da Academia Luso-Brasileira de Letras, da Academia Metropolitana de Poesia Raul de Leoni e da Academia Brasileira de Literatura. Membro da APE – Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto – e da Associação Cultural Sol XXI.
[11] Flecha do tempo é um conceito retirado da termodinâmica que se baseia na noção de que a entropia de um sistema fechado só pode aumentar ou permanecer constante, mas nunca diminuir. É a entropia quem dá a sua direção, e só existe um direcionamento, para o futuro e seu aumento age como um tipo de relógio.
[12] Segundo Beth Brait ( “Mikhail Mikháilovitch Bakhtin (1895-1975) é um pensador russo reconhecido mundialmente por suas contribuições para os estudos da linguagem, quer artística ou não”… “Desde 1918, na cidade de Niével, e de 1924 a 1929, nas cidades de Vítesbk (atualmente Bielo-rússia) e Leningrado, Bakhtin e outros intelectuais bastante próximos a ele, de consistente formação filosófica, literária, científica e/ou artística, participaram de um esforço para construir uma sólida e diferenciada posição diante da linguagem e da vida, dialogando polêmica e produtivamente com a linguística, o formalismo, a psicologia, a filosofia, o marxismo ortodoxo. Informação disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5330808/mod_resource/content/1/Bakhtin.pdf. Acesso em: 31/01/21.
[13] Thiago Arrais é encenador teatral. Bacharel em Direção Teatral, pela UFRJ. Mestre em Teatro pela USP. Doutorando em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Diretor do Coletivo SOUL, ator e diretor de teatro e cinema, crítico de arte e professor do curso de Licenciatura em Teatro do IFCE. Declaração disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcdbdIlFuSg Acesso em: 31/01/21.
[14] Comentário realizado durante sua fala na conferência de apresentação de “A Actriz A Actriz”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcdbdIlFuSg Acesso em: 31/01/21.
[15] Aqui pedimos uma permissão às normas da ABNT para quando nos referirmos à personagem ACTRIZ escrevermos a palavra usando as letras em maiúsculas, conforme faz o poeta. Ao nos referirmos ao livro usaremos “A Actriz A Actriz”, com o segundo artigo em maiúsculas seguindo a grafia do título da obra.
[16] Para Sílvio Ferraz, ao falar de ritornelo, Gilles Deleuze e Felix Guattari sobrepõem três aspectos: (1) o curso-recurso, a ladainha, o canto reiterado dos pássaros, o movimento de eleger um eixo; (2) a fuga do território, o desenho das linhas de fuga; (3) a demarcação, o desenho do território advindo do movimento em torno do eixo, a criação de um estilo. Ou seja, o ritornelo caracteriza-se pelo movimento de eleger um eixo, de traçar um espaço em volta deste eixo, de deixar com que alguns elementos se estratifiquem e se crie a consistência necessária para tornar expressivos tais elementos, quando então encontra uma linha vertiginosa que quase desfaz tudo: um corte, um acidente, uma sensação qualquer que não estava ali antes. Disponível em: https://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/195 Acesso em: 31/01/21
[17] Mario Alberto Pires de Arruda e Tania Mara Galli Fonseca afirmam que “contradizendo a palavra de ordem contemporânea do mundo alarmante e alarmado criado a golpes de medo no Brasil, José Celso Martinez Corrêa afirma dionisiacamente em Evoél : “você não pode resistir a nada. Você tem que re-existir. Morrer e renascer. E você não participa, você é ator, você atua, você age. Você se entrega e age no meio da multidão”. Incentiva a encenação de um outro mundo através de um esboço ficcional inacabado da realidade, no qual o riso, o prazer e os encontros têm sua potência revolucionária na medida em que não pedem permissão para existir” . Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41689. Acesso em: 31/01/21.
[18] Grupo de pensadores que se reuniam com Bakhtin e que dialogavam por meio de publicações e encontros. No hoje denominado Círculo de Bakhtin, incluem-se, além de Mikhail Bakhtin, Valentin N. Volochínov (1895- 1936), Pável N. Medviédev (1891-1938), Matvei I. Kagan (1889- 1937), Liev. V. Pumpiánski (1891-1940), Ivan I. Sollertínski (1902-1944), Maria Iúdina 2 (1899-1970); K. Váguinov (1899-1934), Borís Zubákin (1894-1937), I. Kanaev (1893- 1983)”. Informação disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5330808/mod_resource/content/1/Bakhtin.pdf. Acesso em: 31/01/2021.
[19] Disponível em: https://editorarealize.com.br/editora/anais/conedu/2018/TRABALHO_EV117_MD1_SA8_ID3161_10092018150432.pdf. Acesso em: 31/01/21.
[20] Disponível em: https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/5516. Acesso em: 31/01/21.
[21] Personagens rítmicos são células rítmicas recorrentes em um dado contexto musical que sejam desenvolvidas individualmente. O conceito é de Olivier Messiaen, ritmista. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/379363589/Messiaen-Ritmicista. Acesso em: 31/01/21.
[22] Bakhtin tem um entendimento próprio do que é o gênero do discurso. Este está associado a uma atividade humana e está pressuposto pelo locutor, antes mesmo do ato de fala. Por exemplo, o escritor, na vida cotidiana vai usar o gênero e-mail para enviar uma mensagem e o gênero poesia para escrever o poema, mas antes mesmo de escrever, o autor, responsivamente ao seu receptor, adequa o discurso e o estilo. Para Bakhtin, novos gêneros são constituídos infinitamente, quantas forem as novas atividades ou mesmo os meios tecnológicos. Entendemos que mesmo neste sentido, o manguezal-poema de Serguilha torna-se híbrido e um transgênero no campo da literatura. Aqui temos um ponto sobre o qual um estudo poderia ser conduzido.
[23] Para Bakhtin, todo texto reflete a palavra de outro, seja por meio de citações diretas, indiretas, intertextualidades, intersubjetividades ou receptores imanentes. O texto também refrata vozes sociais e discursos, principalmente porque todo enunciado se constitui em resposta a outros enunciados.
[24] Alguns ensaistas comentam que o uso deste tipo de intertextualidade é comum em outros autores do transbarroco, como Haroldo de Campos no seu livro Galaxias. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/211. Acesso em: 31/01/21.
[25] “O laharsismo, correnteza híbrida com vários movimentos e pensamentos, que mistura ciência, arte, filosofia, esoterismo, panteísmo entre outros ―ismos‖. É excriptura, máquina de guerra que vai destruindo fundamentos, desterritorializando mundos, pluralizando sensações. Lahars, no idioma javanês, quer dizer avalanche. Luisa Monteiro, dramaturga, ensaísta, escritora, e professora da ESTC – Escola Superior de Teatro e Cinema designa o Laharsismo como uma corrente estética que pretende lutar contra a extinção da literatura, a qual, em muitos pontos da Europa se tornou, como diz o autor, um “produto comercial que se vende como pipoca”. Uma luta contra a extinção, mas pela destruição, pois é isso o que uma avalanche provoca: um novo deserto. Isto faz-nos pensar na destruição como possibilidade de uma nova experiência, tal como almejou Walter Benjamin; só que Benjamim desejou uma relação diferenciada com a Filosofia e Serguilha pretende-o com a Literatura; um, com uma aparente orientação sistemática nessa procura e outro sem qualquer eco-sistema: diz-nos: “a-loba-é-a-força-do-olhar-sem-ecossistema (MONTEIRO, 2017. Disponível em: http://www.musarara.com.br/da-desertificacao-da-lobas. Acesso em: 31/01/2020.
[26] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcdbdIlFuSg Acesso em: 31/01/21.
[27] Segundo Foucault, no “cuidado de si” o sujeito passa a estabelecer uma intensidade de relações consigo mesmo. Ele/ela toma a si mesmo objeto de conhecimento e ação. Pelas relações de si consegue transformar-se. A singularidade é encontrada por meio da valorização de si próprio e do conhecimento de si realizado através do cuidado de si mesmo. Segundo Foucault (2006, p.268): “O cuidado de si constituiu, no mundo greco-romano, o modo pelo qual a liberdade individual – ou a liberdade cívica, até certo ponto – foi pensada como ética”. Também na relação entre liberdade, ética e “cuidado de si”, a liberdade era entendida como uma prática na qual o sujeito não poderia sentir-se dominado pelos outros e nem por si mesmo (FOULCAULT, 1985, 2006).
[28] “Entre todas as forças que até agora se dispuseram do ser humano, a mais poderosa deve ter sido a fácil comunicabilidade da necessidade, que é, em última instância, o experimentar apenas vivências medianas e vulgares”. NIETZSCHE, Além do Bem e do Mal, 268. Para Mosé (2018, p.101), usada deste modo “a linguagem torna semelhante a diferença, reduz a multiplicidade à unidade, produzindo abreviação capaz de permitir um rápido entendimento”. Afirma também que a linguagem, refém deste modo necessário de comunicação, “seria um produto da fraqueza”. No entanto, ela diz que o filósofo pondera em Zaratustra que existem muitas linguagens e que este tipo de linguagem vulgar do rebanho aprisiona a própria linguagem. A filósofa Viviane Mosé afirma que libertar a linguagem destas amarras é um gesto político pois “mais do criar novas linguagens, trata-se de desautorizar a linguagem que tem como função calar” (MOSÉ, 2018, p.117).
[29] Cabe esclarecer, que não se trata aqui de uma análise do autor-pessoa, ou seja da figura de Luis Serguilha, enquanto poeta, escritor reconhecido, mas sim do Serguilha enquanto autor-criador desta obra em particular, seus aspectos volitivos que permitiram dar-lhe acabamento e mais especificamente os movimentos para a composição da heroína, ACTRIZ, a partir de tudo que lhe é exterior, dentro e fora do livro A Actriz A Actriz.
[30] Informação disponível em: http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MacREN/article/view/380 Acesso em: 31/01/21.
[31] Em 1968, ao enunciar “a morte do autor” Roland Barthes acreditava que ao elaborar um texto, o escritor baseia-se em referências e ideias anteriores a sua escrita. Este apropria-se de palavras de outros, de conceitos e de textos e organiza de uma maneira própria. Barthes argumentou não haver apenas uma voz no texto, em oposição à crítica literária de sua época. Para sair da terminologia “autor”, Barthes usa o termo “scriptor”, sendo o leitor a dar significado ao texto. O texto tem escrituras múltiplas, saídas de várias culturas e que cruzam umas com as outras em diálogo, em contestação, em parodia, em intertextos. O lugar que tudo se reúne não é o escritor/autor, mas o leitor/receptor (BARTHES, 1988, p. 70). Para Bakhtin, entendemos que a autoria criadora, não é o autor-pessoa, mas seria esta maestria criadora que realiza este movimento de composição no texto”.
[32] Vide página 6 deste artigo (BAKHTIN 2003, p. 414)
[33] O conceito de intersubjetividade aparece no capítulo 7 do livro Marxismo e Filosocia da Linguagem
na definição de compreensão como um tipo de diálogo, o que implica o reconhecimento da interação entre locutores e interlocutores no processo de construção do sentido. A compreensão responsiva ativa pressupõe o princípio dialógico e a noção de alteridade como constitutivos do sentido. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/3015. Acesso em: 31/01/21
[34] Longe de expor as trevas, Rabelais toma a palavra para mostrar o que acontecia na luz da praça pública, na lógica coletiva dos banquetes. O destaque dado ao Banquete na sua obra é o de degustar o mundo. Para Bakhtin (1987), Rabelais dessacraliza os discursos de poder pelo riso. O popular de Rabelais aborda valores do cotidiano, e das festividades na vida livre da praça pública. O riso presente no texto rabelaisiano traz à tona a crítica no e do discurso.
[35] Conceito do filósofo português José Gil. Para ele, “se considerarmos o corpo empírico-transcendental como latência do transcendental no empírico, qualquer que seja a forma de empírico que tomou, temos um corpo não já como “fenômeno”, um percebido, concreto, visível, evoluindo no espaço objetivo, mas como um corpo metafenômeno, visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de tempo, emissor de signos e transemiótico, comportando um interior simultaneamente orgânico e pronto a dissolver-se ao subir à superfície. Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo através do silêncio e da não-inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal”. Disponível em: https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/04/22/o-corpo-paradoxal-jose-gil/ Acesso: 31/01/21
[36] Nos referimos aqui nas imagens do grito nas pinturas de Francis Bacon.
[37] A exemplo do que propõe André Malraux, quando afirma que “a morte transforma a vida em destino” e que “toda arte é uma revolta contra o destino do homem” e, portanto, a arte é afirmação da vida.
[38] A ACTRIZ de Serguilha se aproxima do “ator” na concepção de Artaud no “Teatro e seu Duplo”. Para Artaud 1987: “o ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a seguinte correção surpreendente, que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo análogo e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro, embora não atue no mesmo plano (ARTAUD, 1987,p.162)”.
[39] Para Artaud (1968, p. 66): “o Teatro da Crueldade foi criado a fim de devolver ao teatro uma apaixonada e convulsiva concepção da vida, e é neste sentido de violento rigor e de extrema condensação de elementos cênicos que a crueldade em que se baseia deve ser compreendida. Essa crueldade, que será sangrenta quando necessário, mas não de modo sistemático, pode assim ser identificada com uma espécie de pureza moral severa, que não tem medo de pagar a vida o preço que deve ser pago.”
[40] Daniella Zupo também participou da Ciranda de lançamento do livro A Actriz A Actriz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcdbdIlFuSg Acesso em: 31/01/21.
[41] “Daniella Zupo Daniella Zupo é jornalista, escritora e documentarista brasileira.É diretora e roteirista da primeira webserie brasileira sobre o câncer de mama, o documentario “Amanhã Hoje é Ontem”, selecionado para o RioWebFest como uma das melhores webseries brasileiras de 2016. A experiência gerou ainda um livro homônimo, que vem emocionando leitores com uma visão inspiradora da vida a partir da experiência de uma situação limítrofe. Disponível em: https://daniellazupo.com/ . Acesso em: 31/01/2021.
[42] “Embora os cuidados com o corpo tenham se transformado significativamente ao longo do século passado, observa-se, nas campanhas e peças analisadas, que a noção de imperfeição e a necessidade de aprimoramento permanecem como traço constitutivo do imaginário de corpo”. Disponível em: http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/60/61. Acesso em: 31/01/21