A corrosão em Alegria de Eduardo Mahon, uma resenha
“A Corrosão em Alegria de Eduardo Mahon, uma resenha”, de autoria de Divanize Carbonieri, foi publicada inicialmente na Revista Ecos (UNEMAT), v. 25, n. 2, 2018 (https://periodicos.unemat.br/index.php/ecos/article/view/3329).
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A CORROSÃO EM ALEGRIA DE EDUARDO MAHON, UMA RESENHA
MAHON, Eduardo. Alegria. Cuiabá; Porto Alegre: Carlini & Caniato; Editora Sulina, 2018.
Alegria (2018) de Eduardo Mahon é, num certo sentido, uma história do Brasil profundo, distante dos grandes centros metropolitanos. A narrativa principal se passa na fictícia cidade de Alegria e, embora o estado ao qual pertence jamais seja nomeado, o deslocamento do narrador-protagonista revela o seu caráter longínquo, encravado no coração do país: “eu iria parar de oito em oito horas para dormir nos hotéis de beira de estrada. Dois dias de viagem seriam suficientes para chegar à rodovia federal e, de lá, seguir pela vicinal até meu novo emprego” (MAHON, 2018, p. 11). O personagem, que também não tem nome, é um médico residente na capital (qual delas?) que se muda para Alegria após ser contratado, com um alto salário, pela prefeitura local.
O isolamento desse espaço é ainda reforçado pela sua qualidade de ilha, “curiosamente fincada no meio do maior rio da região” (MAHON, 2018, p. 11). Os grupos sociais da cidade também vivem numa espécie de apartação bem delimitada: mestiços de indígenas ou caboclos de um lado e brancos descendentes de italianos de outro. Para se referir a ambas as coletividades, o narrador utiliza os termos “bugres” e “carcamanos”, de uso corrente comumente pejorativo, mas que, em sua fala, adquirem uma espécie de neutralidade ou pelo menos equivalência, já que não se identifica de fato com nenhum deles. Ao contrário, o médico parece pairar acima dessas distinções, não se envolvendo intimamente nem tomando partido em suas disputas.
A história de Alegria não é muito diferente daquela de outros territórios localizados no centro do país. Habitada originalmente por etnias indígenas que a chamavam de Inquirim (“morro do sossego”), foi um dia alcançada pelas máquinas do governo federal, que abriram caminho até ali, derrubando, com grossas correntes, milhares de árvores centenárias. A via aberta deu passagem aos primeiros brancos, basicamente militares e garimpeiros, que trouxeram doenças responsáveis por dizimar grande parte da população nativa. Metais preciosos não foram encontrados, mas logo se descobriu que o morro era um importante depósito de calcário, despertando, assim, o interesse dos italianos, que assumiram a extração do minério e o poder político e econômico da região. Dessa história comum de desigualdade surge um elemento mágico que talvez explique os estranhos acontecimentos testemunhados dali em diante pelo narrador. Conforme enuncia o historiador da localidade, “os italianos foram amaldiçoados pelo povo retirante por bulirem com o ‘morro do sossego’” (MAHON, 2018, pp. 33-34).
Além dessa camada histórica mais profunda, o presente da narrativa não é precisamente delimitado. Porém, tem-se a impressão de que a história ocorra em algum momento dos anos 50 ou 60, já que não há menção à televisão (nem muito menos à internet), mas sim às novelas do rádio. O protagonista alterna, em sua narração, os eventos ocorridos em Alegria com aqueles correspondentes ao término de seu casamento com Elisa, depois do qual decidiu se transferir da capital. Não faz referência a divórcio, legalmente instituído no Brasil somente em 1977, mas a desquite, que já era anteriormente previsto no Código Civil. E, para falar com sua mãe, por exemplo, ele conta apenas com o único posto telefônico da cidade, operado por uma telefonista. Esses detalhes temporais ajudam a compor a ambientação do Centro-Oeste, num período em que atraía cada vez mais interesse das outras regiões e do governo federal.
Sem ser exatamente rico, o narrador pertence ao mesmo grupo dos privilegiados que já foi examinado de forma irônica, na literatura brasileira, por autores como Machado de Assis e Graciliano Ramos, entre outros. Afinal, ele é um homem branco heterossexual que exerce uma das profissões mais prestigiadas do país, a medicina. As características que ele compartilha com protagonistas anteriores, como Bentinho, Brás Cubas e Paulo Honório, são exatamente o cinismo, a ausência de empatia e uma grande dificuldade de estabelecer vínculos sólidos com outras pessoas. Nem mesmo em relação à mãe ele nutre sentimentos profundos, sem esboçar grande sofrimento ao ser avisado de sua perda: “[s]ua mãe morreu, meu filho. Faz duas semanas já. […] Bati o telefone no gancho. Não era preciso alongar a conversa” (MAHON, 2018, p. 113). Ele também é acusado por Elisa de ser “desatento”, um dos motivos para o fim do relacionamento.
Essas características da personalidade do médico estranhamente refletem o insulamento de Alegria, e nisso se esconde uma pista relevante para o entendimento do desfecho da história. Antes disso, a cidade é acometida por uma mortandade inexplicável de peixes e por uma epidemia de suicídios, chegando gradualmente ao número de milhares de mortes. Diversamente dos suicídios comuns, que de forma geral são o último ato de pessoas deprimidas, os ocorridos em Alegria são atitudes inesperadas de homens, mulheres e crianças que antes pareciam normais e até bastante alegres, fazendo jus ao nome da cidade. O médico, então, faz uma descoberta fundamental: a presença de “uma membrana opaca envolvendo todo o globo ocular” (MAHON, 2018, p. 64) dos suicidas defuntos, aproximadamente como o que acontece com peixes mortos.
A relação entre os suicídios e a morte dos peixes da cidade, ao que tudo indica também voluntária, não chega a ser explicada. Contudo, por meio de uma escrita instigante e bem construída, Mahon oferece uma série de peças que um leitor atento perceberá formarem um amplo mosaico. Não existem pontas soltas nessa narrativa, desde a epígrafe retirada de A peste de Albert Camus, até cada uma das cenas rememoradas pelo narrador. Inúmeros paralelos são aos poucos traçados entre o que se passa em Alegria e a vida pregressa do protagonista, o que permite o desenho de um padrão relativo à morte, às perdas e ao consequente embotamento da capacidade de sentir – e mais do que um tropo recorrente, os peixes funcionam como um símbolo desse processo. Quase sem perceber, o leitor será conduzido a uma investigação da vida interior do personagem, em que a homologia entre interno e externo se torna cada vez mais evidente.
Ainda assim, mesmo o leitor mais atencioso provavelmente irá se surpreender com a conclusão presente no Epílogo. Após a leitura, porém, é inevitável a impressão de que ela faz todo o sentido e que já vinha sendo preparada desde a primeira linha. Além desse domínio admirável da construção narrativa, Mahon também estabelece um produtivo diálogo com a tradição da literatura brasileira canônica, colocando em xeque-mate o grupo que costuma protagonizar essas narrativas. Não se trata de uma ruptura, já que outros autores já haviam demonstrado como os privilégios são capazes de corroer moral e psicologicamente essa camada social. Mas em Alegria tal corrosão se aprofunda radicalmente, tornando a vida de seu protagonista praticamente uma irrealidade. Nenhum homem é, afinal, uma ilha, por mais que construa barreiras entre sua vida e a de outros seres humanos.