A fuga do pensamento dissimulado em conto
A janela ainda mostrava a rua deserta e lúgubre quando um pensamento escapou do caos no qual me enlaço todas as noites. O pensamento rasgou aquele pequeno espaço de tempo que existe entre saltarem da mente acelerada e serem pregados, pela máquina, ao papel. Como aparição, colocou-se entre meus olhos e o quadro da janela, exibindo um contorno corpóreo e uma densidade suspeita. Rendeu todos os meus movimentos, arrancando-me o teclado e me pondo, atônita. Ele era como um instante congelado que passava com uma lenta bolha de tempo. Fiquei ali, sem saber se estava apagada num sonho – do qual duvidava – ou numa vigília ébria – que concebia o impossível.
Vestido de forma ridícula o pensamento, sem rodeio algum, foi enfiando suas ranhuras dentro das minhas misérias. Trêmulo, tendo aquela máquina ameaçada ao chão, exigia que eu não o enfiasse em mais disfarces. E atrás dele foram surgindo outros, meios e inteiros de pensamentos, com tanta rebeldia e descabimento. Alguns deles, ainda nus de alegorias, eu nem mesmo conhecia. Pediam uma vingança antecipada pelo medo de um dia serem usurpados pelas minhas mentiras. Outros, ridiculamente adornados como o primeiro, imploravam por um exílio, longe da culpa – a redatora – que ia, sempre, vestindo-os a seu modo.
Naquele curto instante que parecia ter perdido sua duração no meu descompasso, eu quis dizer “- perdão” aos pensamentos rebelados, perdão pela deslealdade na escrita. Quis explicar que certos padrões, vestidos de farrapos caros, estão sempre atentos para dissimulá-los. Que cada linha, adornada pela razão, nunca acalmou as sensações desesperadas chegando em cascatas nas vontades. Que escrever era só contorcionismo, desviando do tesão por tudo, e bambo numa linha sempre prestes a romper.
Mas eu não disse.
Foi que o eco daquele silêncio levou a máquina ao chão e, num único instante, aqueles pensamentos à fuga. Pisquei e não pude observar, naquele segundo, o rumo que eles escolheram. Também sabia que não lembraria deles depois daquele fantasmagórico amanhecer. Só tentei manter aquela intensidade mais tempo quanto pude… e então, ouvi risos escrachados saírem de dentro dos meus olhos.
Eram eles. Exilados mais uma vez.
Agora, tendo o nada entre meu olhar incrédulo e a imagem que o umbral da janela desenhava, recuperei o teclado, e terminei a última frase daquela confissão.
“E naquele dia, os pensamentos antes mesmo que pudessem ser dissimulados, romperam as linhas e incendiaram os muros, tomando lugar… livres, assanhados e torpes! E nesse rompante, inebriada por eles, ela dançou só e nua, sorrindo de pavor.”
Aline
Muito massa Ângela, sempre tento soltar os meus, mas é custoso…
Ângela Coradini
Obrigada pela leitura, Aline. <3