A PARTIR… PODEMOS… – Por Aline Wendpap
Na coluna mensal “Sonora”, Aline Wendpap escreve sobre cinema e audiovisual, dedicando-se principalmente a tessitura de textos críticos, com ênfase na produção mato-grossense, nacional ou ainda latino-americana. O título da coluna visa brincar com a palavra, que tanto é ruído, quanto pode ser uma conversa ou um som bacana. Não deixa de ser uma homenagem ao som, característica vigorosa do cinema, além de se parecer foneticamente com Serena, nome de sua bebê.
Aline Wendpap é cuiabana “de tchapa e cruz”, nascida em 1983. Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas (2008, EdUFMT).
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Sensível e profundo, sobretudo neste momento pandêmico em que vivemos o filme “A partir… podemos…” produzido pelo Centro Audiovisual Luiz Marchetti – CALM – em coprodução com a Quadro a Quadro Filmes (QaQFilmes) é uma adaptação da obra homônima do poeta cuiabano Ivens Scaff.
O curta traz para a tela as angustias e perturbações internas do personagem interpretado de maneira magistral por Romeu Benedicto. De certa maneira, ele representa um pouco de cada um de nós, talvez por isso, esse personagem não tenha sido nomeado. Aliás, a preparação de elenco é muito bem-feita e desde os coadjuvantes, como Márcio Borges de Campos que nos atordoa com tanto falatório, passando pela esposa, que conhecemos principalmente através dos pensamentos e lembranças do homem, até chegar aos não atores, como o jovem marceneiro que comenta sobre o “pau champanhe” e o pescador (que mais parece uma entidade) sentado num tronco na beira do rio, percebe-se que houve esmero e preocupação com cada fala, com cada gesto e detalhe. Decisões muito acertadas que convergem para reverberações e provocações imaginativas no público.
Uma particularidade desta produção é a ênfase dada à sonoridade, fato que agrega, e muito, para sua qualidade. O trabalho de som direto, realizado por Manoel Neto e Carol Bradalise, em associação com a trilha sonora composta por Augusto Krebs colaboram sobremaneira para a imersão do espectador nas transições de sentimentos experimentados no decorrer da obra. Na sequência inicial, por exemplo, acompanhamos a mudança do burburinho da cidade com seus sons de buzinas, sirenes e carros, que atordoam qualquer ser (mesmo que às vezes não se aperceba disso), pelo silêncio natural da zona rural. Depois a busca do homem por companhia, quando liga o rádio. Mais adiante a cena extraordinária dele boiando no rio ao som da música de Krebs que angustia, quebrada em seguida pelo som das águas, que aliviam… e partimos (com trocadilho) para um novo momento do filme.
O trabalho de fotografia também é muito bom. O rio Coxipó, como ressalta Ivens Scaff na live de lançamento do filme, aparece majestoso. Eu diria ainda com um mistério envolvente. O brilho de suas águas faz pensar em quanta vida ele ainda carrega em seu leito e em como essas águas podem ser revigorantes para quem nelas se deita. Tal como acontece com o protagonista do filme, que após longas horas de meditação aquática parece tomar coragem para mudar, e, tornar a vida mais simples. As cenas no escuro são intrigantes, pois chegamos a apertar os olhos e aguçamos os ouvidos para compreender o que está acontecendo e o ponto fantástico disso é como a direção atiça nossa curiosidade e imaginação.
Misturando a linguagem poética ao real e ao fantástico, a direção conduz também a narrativa para um final surpreendente, sem perder o ritmo do filme, que por sua vez mantém o espectador sempre atento. Não sabemos exatamente quais são as angustias e aflições que o homem (protagonista) carrega, porque temos contato apenas com fragmentos de seus pensamentos, mas conseguimos senti-las como se elas fossem nossas, o tempo todo.
É uma produção muito bem-acabada e onde temos uma verdadeira confluência de fatores que a tornam relevante para a cinematografia mato-grossense. Posto que, apresenta discussões a respeito de preservação, de cultura, de folclore e de anseios maiores concernentes a toda humanidade, como a liberdade e a paz (das quais estamos sentindo muito falta neste momento). Vale a pena ser visto e revisto, pois a cada novo olhar, novas interpretações surgem.
O curta está disponível no canal “CALM Centro Audiovisual Luiz Marchetti”. E pode ser acessado pelo endereço no link abaixo:
A PARTIR… PODEMOS… – CALM Centro Audiovisual Luiz Marchetti, 20’, 2021