A urgência do corpo – Por Sílvia Barros
Sílvia Barros é professora por profissão e escritora por nascimento. Doutora em literatura brasileira e hoje atua na educação básica e na pós-graduação, onde desenvolve pesquisas em torno da autoria negra. Como escritora, publicou contos, poemas e crônicas nas antologias As coisas que as mulheres escrevem (2019), Cadernos Negros (2018 e 2019), Negras Crônicas (2019), Nem uma a menos (2019) e Contos para depois do ódio (2020). Publicou livro O belo trágico na literatura brasileira contemporânea, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2018.
Travessia é uma coluna quinzenal com textos que perpassam as ideias de memórias, permanências e transformações nas vivências negras a partir da literatura e do cotidiano.
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A urgência do corpo
Tornou-se bastante comum que pessoas negras se refiram a si mesmas ou aos seus semelhantes como “corpos negros”, por vezes se referindo à exaltação desse corpo como uma existência digna de felicidade e direitos. Em outros casos, essa expressão é usada quando se enfatiza a posição de subalternidade ou a experiência da violência racial.
A música de Luedji Luna diz:
Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar
Eu sou a minha própria embarcação
Sou minha própria sorte
O eu poético da canção se afirma como um corpo situado na história em trânsito por estar desterritorializado e, portanto, ter de se tornar casa, abrigo, barco, voz, lugar de si mesmo. O corpo é tudo, o corpo é urgente. Quando o discurso ativista denuncia “são corpos negros assassinados diariamente nas favelas e periferias do Brasil”, ele aponta o indivíduo negro caído no chão, sem vida, um corpo nada. Um corpo que perdeu a oportunidade de lutar por humanização, afeto e alegria.
Nilma Lino Gomes, que pesquisou a construção da identidade negra por meio da estética do cabelo, afirma, no livro O Movimento Negro educador, que:
O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente. Isso não significa que estamos descartando o negro enquanto identidade pessoal, subjetividade, desejo e individualismo. Há aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade que constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual. (Gomes, 2017, p. 94)
Afirmar o corpo, de todas as formas, é afirmar a existência e a identidade que só se compõe plenamente no âmbito coletivo.
Carlos de Assumpção usa a imagem do cabelo para lembrar das limitações criadas sócio historicamente para o sujeito negro. Não importa que mudanças sejam feitas no cabelo, ele sempre fará parte de um corpo negro que está suscetível à violência do estado:
Cabelo
cabelo cabelo
eterno pesadelo
quem tem curto alonga
quem tem longo encurta
quem tem crespo alisa
quem tem liso enrola
tudo bem
eu contudo
com cabelo curto ou longo
liso ou crespo
de qualquer jeito
levo chumbo
Carlos de Assumpção é um poeta veterano que teve, aos 93 anos, sua obra relançada como poesia reunida, incluindo inéditos. Trata-se de um homem que presenciou diferentes processos e ciclos da negritude brasileira, acompanhando-os com a sensibilidade de artista. Por todo esse período, a cor da pele, a textura do cabelo, os sinais de que há algo de África em si não deixaram de ser presença em sua poesia. Uma presença necessária e acolhida, mas sempre vulnerável.
O filme M8: quando a morte socorre a vida, de Jeferson De, materializa a questão do corpo negro na objetificação e no utilitarismo do cadáver usado nas aulas de anatomia da faculdade de medicina. O protagonista Maurício, jovem negro se depara com essa presença/ausência ao ingressar no curso. Maurício é um corpo negro vivo dissecando um corpo negro morto, no meio da branquitude. Ele não precisa dizer quem é para ser reconhecido, nem pelos colegas de turma, nem pela mãe da amiga branca, nem pelos servidores negros que limpam a sala de anatomia e manipulam os cadáveres entre uma aula e outra, porque ele é a exceção que confirma a regra. Estar ali faz dele um alvo de comentário, de curiosidade, de hiperssexualização, de políticas de embranquecimento, ou seja, de toda sorte de violência racial.
São essas políticas de embranquecimento que nos fazem retomar a reflexão inicial: se afirmar como um corpo negro, na individualidade e na coletividade, é anticolonial, movimenta para fora do embranquecimento e para fora do silenciamento. É um convite para ocupar um lugar no mundo, mesmo que esse lugar seja o próprio corpo (um corpo-mundo). O corpo como o lugar de fala que ecoa no poema de Lubi Prates:
Meu corpo é meu lugar de fala
meu corpo é
meu lugar
de fala
embora
a voz seja
apenas
um resto
arranhando a garganta .
meu corpo
é meu lugar
de fala
e eu falo
com meus cabelos e
meus olhos e
meu nariz.
Meu corpo é
Meu lugar
De fala
E eu falo
Com minha raça.
(…)