Um convite à leitura do livro “Água não tem galho” de Aldi Nestor, Andreza Pereira, Loreci Demeneghi, Rose dos Anjos e Santiago Santos
Em Água não tem galho de Aldi Nestor, Andreza Pereira, Loreci Demeneghi, Rose dos Anjos e Santiago Santos há diferentes estilos de escrita, de experiências do urbano e de uma cultura regional. O cheiro do pequi nas ruas do Centro, a Igreja do Bom Despacho sobressaindo aos semáforos, as mulheres que caminham ao lado do aço de Maria Taquara. O livro, que será lançado no próximo dia 11 de dezembro de 2020, reúne contos ambientados em Cuiabá, Mato Grosso. Uma cidade não é só pedra, mas todo o imaterial que também a levanta. Olhando para a cidade onde vivem, cinco autores escrevem cinquenta contos em Água não tem galho.
Aquarela da capa: Thiago Sinohara
***
No encalço de um sapato
Loreci Demeneghi
Tinha ela cinco anos quando desejou um sapato vermelho. Os dedinhos dançavam na folga do sapato que tinha sido da irmã mais velha. Branco e sem graça. O vermelho brilhava nos pés da filha da patroa da mãe, na vitrine da loja e pisando os ladrilhos da Igreja São Gonçalo do Porto, nas missas de domingo.
Aos 10, a mãe caiu de cama. O dinheiro ficou ainda mais raro e o sapato demorou tanto nos pés da irmã que chegou aos seus quase apertado. E tão gasto que o branco já nem era mais branco.
Aos 15, tinha sua própria patroa, mulher de jeitos finos, lapidados no Liceu Cuiabano e nos saraus do clube feminino. Nos pés dela cintilavam fivelas, presilhas e laços presos em sapatos de verniz, de couro, de camurça. Nos sapatos dela, quando sobrava tempo, deixava um pouco do seu talento, limpando, engraxando, lustrando. Nos vermelhos se demorava mais. Alisava, media e jurava: um dia teria o seu.
Os 20 anos a encontraram polindo os sapatos pretos do marido em uma casa compartilhada com a família dele num casarão da Comandante Costa. E esfregando, sobre alvas sapatilhas, os corredores da Santa Casa de Misericórdia. No percurso que peregrinava todo dia entre um endereço e outro, não perdia de vista os pés das mulheres que lhe cruzavam o caminho nem as vitrines das sapatarias. A admiração pelos tons encarnados só crescia.
Aos 35, tinha tantos filhos que quase não os podia contar. Se virava daqui e de lá para os alimentar e vestir. Para os calçar, adotava a lição de economia aprendida pelas mãos da mãe: os calçados passavam de pé em pé.
Aos 50, chegou mais rápido do que se poderia imaginar. Os sonhos dos filhos ganhavam o primeiro lugar. Viúva, precisava se virar mais. Saía mal o dia raiava. Retornava, noite alta, ansiosa para descalçar os detestáveis sapatos marrons que faziam parte do seu uniforme.
De repente, estava com 60. A vida começava a se tornar mais leve. O fardo pesado ia ficando para trás. E um belo dia, subindo a 13 de Junho, a caminho da matriz, parou diante de uma vitrine abarrotada de sapatos carmim, magenta, cereja, escarlate, coral, bordô, borgonha… O vermelho estava em alta na estação. Não hesitou. Muniu-se de coragem e entrou. Provou um, dois, três… De couro, de vinil, com salto, sem salto, bico fino, mocassim, anabela… Se pudesse, levava mais de um. A escolha recaiu sobre um modelo de tonalidade vibrante, salto médio, que o vendedor, ante o seu entusiasmo, perguntou se ela não gostaria de já levá-lo no pé. É claro que ela recusou. Não ia desperdiçar de maneira tão modesta o debut de um bem tão desejado ao longo de uma vida inteira.
Quando completou 65, o sapato ainda estava lá, no alto da prateleira, aguardando ocasião digna de pisar o chão. Quando empoeirava, ela vinha com a flanela e o encerava até deixá-lo brilhando. Depois o devolvia ao seu lugar e ficava um longo tempo admirando-o.
Às vésperas dos 70 anos, um ardiloso chinelo de dedo a derrubou e a morte foi encontrá-la esparramada sobre o chão encerado da cozinha. Os filhos, mal a enfiaram no caixão e a cobriram de terra, correram a fazer a partilha. O sapato sem uso coube a uma nora de Campo Grande, que viajou com ele calçado nos pés, depois de esfregar um pouco de cera de vela para amaciá-lo.
Enterrada descalça, há quem diga que a vê arrastando os pés nas imediações do cemitério do Porto e que não convém passar por ali dentro de sapatos vermelhos.