Baixio das Bestas, uma poeira aterrorizante
O visceral cinema de Cláudio Assis fascina e horroriza na mesma medida. Diante disso, Gina Trigueiro escreve sobre Baixio das Bestas, uma radiografia da violência nos rincões do Brasil.
***
Baixio das Bestas, uma poeira aterrorizante
A filmografia do pernambucano Cláudio Assis é marcada pela contestação, seja ao próprio cinema, em seus enlatados e produções que buscam o lucro ou no esvaziamento de significados que foram naturalizados pela indústria, seja ao contexto político-social excludente, no qual explodem a injustiça, a discriminação e a violência. Cláudio Assis diz que fazer cinema é ter uma responsabilidade sociológica, o cinema é uma arte revolucionária, cinema é propor.
O cinema pernambucano contemporâneo, embora diversificado no estilo, é unido pela crítica que os cineastas fazem à realidade do estado. Crítica que não se restringe ao regional, mas se amplia, pois refere-se à realidade da população pobre brasileira. “A produção cinematográfica recente de Pernambuco conjuga questões sobre sua espacialidade e visualidade, imagens de um nordeste em tensão com problemáticas políticas” [1]. Os problemas que assolam o interior de Pernambuco, não só de Pernambuco mas de todos os interiores (e centros) do Brasil, como a exploração sexual infantil, são tratados no filme Baixio das Bestas
Baixio das Bestas é o segundo longa-metragem de Claudio Assis, lançado em 2007. Esta película é marcada pela presença do arcaico na contemporaneidade. O filme se inicia com cenas de um engenho em ruínas, assim como a vida das pessoas daquele lugar. Uma comunidade herdeira da violência colonial, um legado que se perpetua, “é o câncer da terra, que é a zona canavieira, que é o açúcar, que fode a terra e que fode as pessoas, consequentemente. O Brasil tem 500 anos de plantação de cana de açúcar. Isso fode não só a terra, como os seres humanos também” [2]. A relação com a terra é refletida no comportamento. No comportamento de exploração apresentado durante todo o filme. Aqui, a exploração pesa mais sobre os ombros femininos. O corpo da mulher é objetificado, desde a relação dos estudantes burgueses (interpretados por Matheus Nachtergaele e Caio Blat) com as prostitutas (Hermila Guedes, Dira Paes e Marcélia Cartaxo), até a mais impactante cena de exploração da neta/filha Auxiliadora (Mariah Teixeira) pelo avô/pai Heitor (Fernando Teixeira).
A exploração sexual infantil, que vemos com a menina Auxiliadora, é acontecimento recorrente, cotidiano nos rincões do Brasil. Basta viajar, principalmente para as regiões do Norte e Nordeste do país, para que as cenas dessa película deixem de ser um choque para os mais desavisados. Lembremo-nos das meninas indígenas de São Gabriel da Cachoeira, município do Estado do Amazonas, trocando sua virgindade por uma caixa de chocolates. Essas regiões estão condenadas ao esquecimento, onde as leis federais não operam, há somente as leis locais. São regiões que não fazem parte do eixo cultural brasileiro, nas quais são raros passeios turísticos, onde os humanos que ali habitam são confundidos com a fauna local. A cena final de Baixio das Bestas, em que um trabalhador canavieiro espreme uma cana, deixando só o bagaço, resume as relações daquele povoado: todos são explorados até a destruição, tanto a terra quanto os homens.
Os filmes de Cláudio Assis tratam de problemas sociais reais, constituem-se de dados concretos de problemas concretos. Os seus personagens são os marginalizados, os sem nome, os “não-ser”, aqueles que não são reconhecidos como seres humanos. Nesse mundo marginal vivem calados diversos personagens reais, que são objetificados, tratados como uma coisa qualquer: “os do lado de cá”, segundo um personagem de Febre do Rato (2011), outro filme de Assis. Como diz a letra da banda pernambucana Eddie: “é uma pena que se encontre na lata de lixo, urubu, gabiru, cachorro e gente…”, é uma frase que ilustra como são tratadas essas pessoas. Vivem em uma tensão permanente, uma incerteza no futuro mais imediato.Nesse ambiente, as instituições como educação, saúde, segurança são falidas. No longa-metragem Amarelo Manga (2003), que marcou a estreia de Assis no formato, a frase dita por Ligia (Leona Cavalli), logo no início do filme, e que se repete no final com imagens dos variados marginalizados, primeiro vem um dia, e tudo acontece naquele dia até chegar a noite, que é a melhor parte. Mas logo depois vem o dia outra vez… e vai, vai, vai… é sem parar, representa a situação de desesperança que grande parte dessas pessoas sentem.
Baixio das Bestas não traz respostas nem propostas, mas denuncia a existência de uma realidade cruel que fingimos não existir. Assistir a película é se sentir em meio à poeira daquele canavial: incômoda, sufocante e aterrorizadora.
[1] VIEIRA, Marcelo Dídimo Souza; LIMA, Erico Oliveira de Araujo. Baixio das Bestas e Árido Movie: entre a ‘podridão do mundo’ e as perspectivas de mudanças. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, 2012. Ano 39, Nº 38, p. 55.
[2] Claúdio Assis, em entrevista para o site Voo Subterrâneo. http://voosubterraneo.wordpress.com/2013/11/09/claudio-assis/
* Gina Trigueiro é graduada em Filosofia pela UFMT, mestranda em Antropologia Social também pela UFMT, mãe de Alicia e admiradora do cinema nacional.
ALECIO DONIZETE
tRABALHEI EM RECIFE POR TRÊS ANOS. UMA ÚNICA VEZ, VI DE PERTO O TALENTOSO, MAS NÃO MUITO SIMPÁTICO, cLAUDIO aSSIS…
BEM, A SIMPATIA É SEMPRE BEM-VINDA, MAS NA ARTE O QUE CONTA MESMO É O TALENTO, NESTE CASO, UM TALENTO EXTRAORDINÁRIO.
PARABÉNS GINA, PARABÉNS WULDSON