Cinco poemas de Bernardo Caldeira
Bernardo Caldeira é natural de Belo Horizonte, onde reside, lançou sua primeira coletânea de poemas Vozes do Silêncio (Benvinda Editora), em 2016. Estilhaços, seu segundo livro, tem previsão de lançamento no segundo semestre de 2019 pela editora Urutau. Trabalha como psicanalista, professor, baterista e tradutor.
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CAUSA MORTIS
O caçador de crocodilos
morreu nas águas do mar.
Steve Irwin nadava com as arraias
quando uma delas perfurou-lhe o coração.
Ele estava feliz.
Ayrton Senna da Silva chocou-se a 300 km/h
contra a mureta da curva Tamburello.
Destroços da Williams atravessaram
seu famoso capacete verde e amarelo.
Todos nós choramos ao som
do Tema da Vitória.
Marie Curie não morreu no laboratório,
mas sua medula sucumbiu à anemia.
Foram anos de radiação
em nome da ciência.
Ela é a primeira pessoa
a ganhar o Nobel duas vezes.
Assim foi também com Portinari – que pintou
até o chumbo e o desejo o envenenarem.
Seus grandes assassinos são
o branco de prata e o amarelo de Nápoles.
Em 28 de janeiro de 1986
Francis, Michael, Ronald, Judith, Ellison, Gregory e Christa
explodiram juntos a bordo da Challenger.
O mundo viu ao vivo
os escombros caírem do céu –
quantas vidas, quanto aço é necessário
para o homem poder dar pequenos passos.
Jean-Baptiste Poquelin sofria de pneumonia. Quis o destino
que ele tivesse uma crise convulsiva em pleno palco
ao interpretar o protagonista da sua última peça,
‘O Doente Imaginário’.
Mesmo enfermo, insistiu em terminar o espetáculo.
Morreu em casa horas depois,
e por ser ator não recebeu a extrema-unção.
De minha parte, espero que a morte
seja gentil comigo. Quando ela vier com sua mortalha
não vou espernear nem dar chilique.
Vou tomar sua mão e andar sorrindo
se ela prometer que vai constar no obituário:
“Hoje partiu Bernardo. Foi-se em paz e alegria.
Do peito sangrava rosas: teve um ataque fulminante
de Poesia.”
*
FERIDA
Lambes a ferida que te parte ao meio
como a mãe zelosa adula sua cria –
remendas memórias com tua parca saliva
e sentes na língua o gosto invisível
do esquecimento
Juntas os cacos de água
para tentar recompor o espelho –
mas quando enfim te enxergas inteiro
teu rosto de repente se espalha
como folhas secas ao vento
*
BALEIA
Para Alejandra Pizarnik
Mais uma vez não passo
de uma parede branca – superfície
cheia de desejos
mas sem qualquer
realização
O amor, o afeto e a memória
se agitam no fundo do mar –
a lava pressiona o vulcão
e tudo está prestes
a transbordar
Palavras nadam e nadam
cruzando as águas
azuis do silêncio – mas o poema
morre
como uma baleia, encalhada
na praia deserta
da minha garganta
*
POMBAS BRANCAS
De nada adiantam os livros
as fotos
o pavor escrito
no rosto dos mortos
os milhares de corpos
empilhados em valas comuns
Não têm serventia
as cartas de amor
dos tempos de guerra –
tampouco importam
os diários das crianças
varridas da face da Terra
Os museus pegam fogo
mas são inúteis
os monumentos –
da memória sempre surge
a velha Fênix
do esquecimento
Pombas brancas descansam
em cima do muro – lavando e lavando
suas mãos impassíveis
com o sangue escuro
daqueles que são
invisíveis
*
ENSAIO PARA A MORTE
Enquanto não faço poemas
faço as compras no mercado:
escolho o pão, o queijo, a carne
uma cabeça de alho
Enquanto não faço poemas
trabalho: manejo palavras
de corpos que andam
nas ruas de olhos fechados
Enquanto não faço poemas
faço amor
com a mulher que me ama:
às vezes eu faço na sala
às vezes eu faço na cama
Enquanto não faço poemas
eu durmo
e me ponho a sonhar:
tem dias que quero dormir
tem noites que eu quero
acordar
Enquanto não faço poemas
sento-me à mesa do bar:
lúcido, eu encho o meu crânio
até a Razão entornar
Enquanto não faço poemas
eu fico no quarto
lendo algum livro
Enquanto não faço poemas
me esqueço da vida
e simplesmente
vivo