“Boku Dake Ga Inai Machi (A Cidade Onde Apenas Eu Não Existo)” (2016)
Boku Dake Ga Inai Machi (Erased/ A Cidade Onde Apenas Eu Não Existo). Série Anime. Direção: Tomohiko Itō. País de Origem: Japão, 2016.
A temporada de inverno de 2016 marca a estreia de um anime de suspense psicológico que lida com mistérios e viagem no tempo, Boku Dake Ga Inai Machi, em inglês Erased e, no Brasil, A Cidade Onde Apenas Eu Não Existo. A série de 12 episódios, escrita por Taku Kishimoto, a partir do mangá de Kei Sanbe, e com direção de Tomohiko Itō, acompanha Satoru Fujinuma, no ano de 2006, com 29 anos, que ganha a vida como entregador de pizza e é aspirante a mangaká (com algumas frustrações já colhidas). Satoru carrega consigo um evidente sentimento de solidão e tem dificuldade em se relacionar com as pessoas. Uma colega de trabalho, a jovem Airi Katagiri, parece nutrir uma afeição pelo rapaz. Airi é o oposto de Satoru, é alegre e extrovertida. Além de Airi, o círculo de relações de Fujinuma contém a sua mãe Sachiko, uma ex-jornalista, de aparência jovem para os seus 52 anos. Uma mulher de inteligência aguçada e extremamente compreensiva.
A personalidade introspectiva e arredia de Satoru contrasta (ou ajuda a esconder) a sua habilidade especial e estranha, que ele chama de revival. Satoru, precedido pela aparição de uma borboleta azul, pode voltar alguns minutos no tempo para agir e impedir eventos desastrosos (no que pese ser bem-sucedido, pode acarretar algumas vezes prejuízo ao seu corpo). No primeiro episódio, Satoru consegue evitar que uma criança seja atropelada por um caminhão. Ferido, recebe a visita de Sachiko, que se dispõe a cuidar dele. Certo dia, no estacionamento de um supermercado, Satoru tem um revival e Sachiko, ao observar o local, acaba por tornar impraticável o que parece ser o rapto de uma criança. E mais, faz com que Sachiko reconheça o sequestrador, que tem ligação com o passado dela e de Satoru, algo que ocasionou o seu fechamento para o mundo. Esse fato leva a uma tragédia envolvendo Sachiko, pelo qual Satoru é considerado suspeito.
Está formado o quadro para que ocorra um revival. E esse dos mais longos, que proporciona a Satoru a chance de mudar os acontecimentos passados, assim impedindo o incidente do qual sua mãe foi vítima. O homem de 29 anos recua no tempo, até 1988, quando se percebe no corpo do menino de 10 anos que foi um dia. Nessa época, o sequestro e morte de três crianças marcaram profundamente a cidade, e Satoru, que foi o último a ver com vida a menina Kayo Hinazuki, precisou depor tentando ajudar seu amigo Jun Shiratori, ou Coragem, que foi acusado dos crimes. A inação de Satoru foi carregada como culpa. Só que agora Satoru tem a oportunidade de salvar Kayo, as outras crianças e inocentar Coragem, antecipando-se aos movimentos do serial killer.
Mesmo com 10 anos, Satoru pensa como alguém com conhecimento e experiência. E ele usa isso para se aproximar e ficar amigo de Kayo. Apesar de conquistar a confiança da menina reservada e solitária, Satoru não consegue alterar os fatos. Kayo ainda é sequestrada e morta pelo seu algoz. Satoru retorna para o presente, no qual, apesar do auxílio de Airi, acaba preso pela polícia. Momento em que um segundo revival ocorre e Satoru se encontra novamente com 10 anos. Determinado, tem no salvamento de Kayo seu maior objetivo. Mas ele descobre que a menina é vítima de abuso infantil. Além de impedir o assassinato, Satoru decidi proteger Kayo, resgatando-a de seu inferno pessoal. O arco dramático da menina circunspecta e tristonha é o mais bem elaborado e desenvolvido do anime. E a relação entre Kayo e Satoru é emocionante, um laço de amizade sólido, pautada pela confiança e sinceridade, com ecos de primeiro amor. Sentimento que Satoru estranha e contesta, já que é um adulto em corpo de criança (que não deixa de ser um infante). Boku Dake Ga Inai Machi exalta valores como a amizade e a coragem de ousar mudar “destinos” irremediáveis. O modo como a turma de Satoru o acolhe e ele passa a se relacionar com o grupo o faz amadurecer e perceber o quanto vínculos devem ser engendrados e cuidados. Cada vez mais se afirma o menino humilde, terno e valente. Entre os amigos, destaca-se Kenya, por sua inteligência e parceria, como costuma ser o melhor amigo de um super-herói. Heroísmo e lealdade que estão em Satoru, um excelente personagem shounen que demonstra coragem diante das adversidades. As virtudes centrais estão todas lá, ainda que a lógica de suas ações seja colocada em xeque por algumas atitudes irrefletidas (no que concerne à mãe de Kayo, por exemplo) e por lacunas na memória (há muito de inventado em nossas lembranças e, claro, esquecimento). O menino Satoru é cativante e real e tem uma mãe compreensiva e astuta. Ele ainda conta com o apoio do professor Yashiro Gaku. Não à toa, as personagens principais são um dos pontos fortes de Boku Dake Ga Inai Machi.
O roteiro da série merece destaque pela seu mote original. Na verdade, como recicla e aplica vigor a um “velho” recurso para se prestar contas com o passado e modificá-lo. Nesse sentido, o anime dirigido por Tomohiko Itō não é apenas a história de um adulto preso no corpo de uma criança. É um tour de force sobre um adulto que retorna ao passado para evitar que crimes hediondos sejam realizados e, desse modo, livrar-se de seus próprios tormentos.
Quanto à animação em si, Boku Dake Ga Inai Machi tem aspectos que a tornam primorosa. As cores levemente apagadas, a forma como captura o inverno e a introspecção decorrente combinam com a atmosfera misteriosa do anime. Já a trilha sonora, composta pela renomada compositora Yuki Kajiura, é atmosférica e melancólica, uma das principais responsáveis pela narrativa envolvente.
Ainda que seu aspecto sobrenatural não seja explicado, já que Satoru não sabe porque o revival acontece, isso não chega a causar prejuízo à série. Deve ser considerado que o poder do protagonista é pano de fundo para o drama e suspense que são gêneros constitutivos do anime. Será que o poder de Satoru precisa ser mesmo explicado?
Talvez a falha (deslize, para ser mais justo) de Boku Dake Ga Inai Machi esteja no mistério construído sobre o assassino e a pergunta “quem será” apresentar uma resposta frustante, já que indícios, com “jeito” de confirmação, podem ser notados aqui e ali. Porém, um desfecho para a relação Satoru-assassino pra lá de atmosférica e tensa minora a revelação antecipada e anticlimática do vilão do anime.
Boku Dake Ga Inai Machi é um mistério de assassinato que mantém o olhar firme na realidade, mas que traz elementos de fantasia e a usa habilmente, além de engrossar com méritos o filão de obras que tratam de viagem do tempo, como os longas-metragens Efeito Borboleta (2004), de Eric Bress, e Questão de Tempo (2013), de Richard Curtis, e a série de anime Steins; Gate (2011), de Hiroshi Hamasaki.
É perigoso mudar a linha temporal de nossa vida, mas quem não sonha, uma vez ou outra, com “um segundo tempo”. Ainda que fique um período (ou longo) na cidade onde apenas você venha a existir.