Buraco Negro
Sentir é como andar sobre uma corda bamba em um precipício, a chegada eminente da morte te mantém viva, cada passo pode levar ao chão. Suas pernas tremem a respiração antes compassada agora é curta e pesada. É o medo de morrer que te faz persistir, parar não traria bons resultados, não a essa altura do campeonato. É impossível ver o chão, tentar causa vertigem e por mais que a vontade nesses momentos seja correr, tudo caminha em câmera lenta. Está no meio do caminho, na ponta à frente é possível ver terra firme, não dá para voltar atrás. Caminha, mas seus pés não saem do lugar, o vento frio contrasta com seu corpo quente. Sentir é viver em perigo eminente de morte, e por mais que em muitos momentos fosse desesperador, era a única coisa que a mantinha viva. Por algumas vezes tinha consciência da sorte que teve de ainda conseguir se manter em equilíbrio. Nunca soube em que ponto tudo começou a doer, mas um dia foi como se tomasse consciência que lhe faltava um pedaço. Algo a consumia por dentro, a tragava e por muitas vezes confundia seus olhos com os olhos da loucura. E por mais que se possa tentar prever a sina de quem vive por um triz, nunca saberíamos o que se passa no coração dela. Muitas vezes nem mesmo consegue decifrar todos os signos de sua linguagem interna.
Desde muito pequena aprendeu que nas ilusões podemos fugir dos pesadelos, e esses ela tinha muitos. Aos cinco anos foi abandonada pelo pai que resolveu tentar a sorte em outro canto do país. Carregar a filha não estava em seus planos, e pela primeira vez Luiza conheceu o peso do sentir, órfã de mãe, agora se via órfã de pai. Abandonada à própria sorte e entregue a sentimentos que não deveriam ser conhecidos por uma criança viu sua inocência manchada pelo abandono. Aos poucos a vida entrava nos eixos. Mesmo que lhe faltasse muito, ainda existia a avó, talvez a única pessoa de quem sentiu amor, se é que ela conhece isso. Ela tinha o mesmo olhar do filho, porém mais terno e cansado, de um cuidar que nunca dormia, mesmo assim Luiza aguardava o retorno do pai. Em todo aniversário acordava o mais cedo que podia, vestia sua melhor roupa e ficava sentada na área da frente, com o olhar perdido entre as flores do jardim, esperando. A avó, muitas vezes sem sucesso, tentava a remover dali e ela, silenciosamente aguardava o retorno do pai. Tentava encontrá-lo entre desconhecidos nas ruas, no caminho para a escola e até nos programas de TV. Aos poucos foi se dando conta que talvez já nem se lembrasse de suas feições. Aos onze, parou de procurar, foi se acostumando com a ausência, já não tinha mais espera.
Aos quinze queria ser como o pai e partir dali, daquele chão batido e de terra vermelha que manchava a sola de seus pés. Trocaria as paisagens com cafezais e araucárias por arranha-céus e gente. Agora um rio de cólera corria em seu corpo, afogava e perdia o ar nessas águas. Talvez lá, onde quer que fosse seu destino, conheceria o que chamam de amor, até agora só tinha conhecido a desesperança. Era tudo tão solitário e silencioso por essas estradas que seu maior desejo era se perder na multidão. Sozinha caminhava todas as noites pela estrada de terra, descalça e no escuro tinha os passos iluminados pela luz das estrelas. Repousava o corpo pequeno no mato orvalhado da beira do rio, nem se importava em molhar toda a roupa, ficava horas observando o céu. Quando era noite de lua cheia tudo ficava tão claro que era possível ver os lírios do brejo na outra margem. Aquele era seu local sagrado, nada a atingia quando estava ali. A cada estrela cadente que via fazia o mesmo pedido, queria abandonar aquela vida, queria conhecer o mundo. Seu único bem naquele momento era a luz das estrelas, e isso é algo do qual ela sentirá saudades depois.
Aos dezoito, quando a doce avó morreu, conheceu o gosto amargo da solidão total. Não conseguiu chorar, sentia tanto que um buraco negro se instalou em seu peito engolindo tudo ao redor. Agora tudo era vazio. Sem ninguém e sem nenhuma vontade de ficar partiu então da pequena cidade do interior atrás dos seus sonhos de menina, não tinha medo, já não tinha para onde voltar. Nenhuma palavra de amor em meio ao seu caos, tudo agora é o mais completo silêncio.
Era noite quando chegou à rodoviária, era também a primeira vez que saía de sua cidade de natal. Partia em definitivo e seu caminho seria longo, só chegaria na noite seguinte. A pequena bagagem refletia uma vida cheia de vazios, não havia herança ou recordações entre seus pertences, somente algumas peças de roupa e algum dinheiro. Até certo trecho da estrada foi acompanhada pelas luzes do céu, não conseguia dormir, só pensava em como seria daqui para frente. A vida simples ao lado da avó não havia lhe preparado para o que estava por vir.
Luiza foi engolida pela cidade grande, andou sem rumo pelas ruas gravando cada detalhe na mente. Queria andar descalça que nem na roça, odiava sapatos, mas logo percebeu que essas ruas não seriam apropriadas. Era o primeiro dia de julho, fazia um frio danado, já estava muito bem acostumada a isso. Achava engraçado como o frio daqui, apesar de menos intenso que em sua terra, era muito mais solitário e doído. Já estava cansada e não poderia passar a noite perambulando pela rua. A primeira pensão em que arrumou estadia naquela hora era um muquifo, deitada na cama de cima do beliche fitava o teto como quem buscava as estrelas, o colchão era tão desconfortável que sentia falta da terra orvalhada molhando suas costas. O barulho do rio foi substituído pelo som de buzinas e automóveis. Na primeira noite ao percebeu o tremor do prédio achou que tudo iria desmoronar e que morreria ali, olhando para o teto sem nada conhecer. Na manhã seguinte descobriu que aquilo era normal quando passava ônibus, a dona da pensão garantiu que não havia perigo, ela devia ter a mesma idade que sua mãe. Tereza era o nome dela e ficaram a manhã toda conversando na cozinha, ela também era uma mulher sofrida, seus olhos eram vazios como os dela. Tinha perdido um filho, aquilo deu um nó no peito de Luiza. Logo o laço entre elas estava formado
Nos primeiros dias não conseguia entender como funcionava a engrenagem daquele habitat nada natural. Havia se enganado, a multidão não a livraria da solidão, achou que talvez não fosse suportar. Sentia-se sem o traquejo necessário para o contato humano, mesmo assim nunca chorou nem se lembrava da última vez em que isso havia acontecido. Talvez aos onze, quando desistiu do pai. Desde muito pequena sabia que a vida não era fácil, mas que era preciso se manter forte. E foi a sua força e a ajuda de Tereza que a fizeram permanecer. Logo estava trabalhando na cozinha da pensão, o salário era pouco, mas foi o suficiente para que se estabelecesse.
Conseguiu um emprego em que ganhava um pouco mais, agora era secretária em um pequeno escritório, juntou algumas economias e decidiu que era hora de se mudar. Pediu mais uma vez o auxílio de Tereza que a ajudou a encontrar um quartinho não muito longe dali, o aluguel não era muito caro e morar ali poderia ser bem tranquilo. Mesmo assim todas as noites fitava o céu em busca das estrelas, mas logo percebeu que na cidade ele era tão denso e escuro que era impossível enxergar qualquer coisa. Continuava a ser consumida por dentro, conforme entrava cada vez mais no ritmo da cidade mais aumentavam suas sensações de vazio e ansiedade. Lembrou-se de quando inventava vidas imaginárias para ela na infância, era a forma que encontrava para escapar de suas dores. Precisava de uma ilusão para agora, mas já não poderia inventar historinhas, elas já não eram capazes de salvá-la da realidade. Encontrou então o álcool e todas as suas cores, um prisma de sabores e efeitos quiméricos. De todos preferia os amargos e que desciam rasgando pela garganta e aliviavam algo dentro dela. Começou a frequentar alguns bares na região, lugares barulhentos onde era fácil ensurdecer o peito, assim não conseguia ouvir a fúria do seu coração torturado.
Aos vinte já nem lembrava a garota do interior, seu mundo havia mudado, agora a muito custo tinha conseguido voltar a estudar. Acordava todos os dias as seis, um banho rápido, um café preto e logo se colocava na rua para mais um dia de rotina. Voltava próximo à meia-noite, só sentia o cansaço quando a água quente percorria seu corpo. Deitava sempre olhando para o teto, já nada mais procurava, fechava os olhos e logo adormecia. Quase não tinha tempo de ver como sua vida era vazia, praticamente sobrevivia, só se dava conta da sua situação aos sábados pela manhã quando acordava sem hora e se via com um final de semana completamente sem companhia. Nesses dias saía andando sem rumo, passava horas fora de casa. Acabava sempre em um bar, bebida em uma mão e cigarro em outra, se divertia observando os desconhecidos ao redor. Algumas vezes arranjava uma companhia, um alívio momentâneo para a carência. Depois era engolida pelo vazio, consumida por seu buraco negro particular. Seu corpo que antes havia sentido o prazer das paixões fugazes se encolhia na cama. Não adiantava tentar fugir, sua solidão sempre falava mais alto.
E assim a vida seguia sua rotina habitual, nos dias mais frios sentia falta da vida no interior, pensava em voltar, mas não conheceria mais nada daquele lugar. Sempre que sentia o cheiro de café fresco era invadida pela lembrança da vó torrando o grão logo pela manhã, só quem já sentiu o aroma doce da torra sabe como são fortes suas marcas. O café sempre fez parte da vida da sua família, o terreiro do sítio deixado pelo avô ficava repleto de frutos para serem secos e geralmente era ela quem ajudava a avó a espalhar os grãos para garantir que a pré-secagem fosse feita corretamente. O rastelo de cabo longo, por tanto tempo empunhado durante a sua infância, deixou calos leves nas palmas das mãos. Muitas vezes quando o desespero da cidade grande invadia sua vida passava os dedos sobre eles para lembrar-se de onde tinha vindo. Seus pés já tão habituados ao asfalto seguiam eternamente manchados pela terra roxa, assim como seu coração.
Em mais um dos seus dias comuns acordou com a sensação de que tudo iria mudar. Arrumou-se com mais calma que o normal, já não tinha pressa. O barulho contínuo do chuveiro pingando a incomodava, mas nada que não pudesse abstrair enquanto tomava seu café. Agora seu constante isolamento a preocupava, será que nunca seria capaz de deixar alguém se fixar em sua vida? Sempre que tinha algo a partilhar recorria ao velho diário, dificilmente confiava nas pessoas. Tinha sido retirada do mundo desde o nascimento, marcada para ser sozinha, o abandono do pai ainda ecoava por todos os cantos. “Um buraco negro em constante expansão” era sua única tatuagem, a única frase que fazia sentido em toda sua vida e que estava sempre presa entre esses pensamentos. Quando olhou no calendário se deu conta de que já era sábado, também era seu aniversário de 25 anos, o fatídico dia de junho que sempre fizera questão de repelir. Como poderia ter esquecido que era hoje? Tinha combinado com alguns amigos, se é que poderia chamar assim, de sair para comemorar. A primeira vez em anos, agora sabia o porquê da sensação de que hoje era um dia diferente, seu sexto sentido nunca falhava.
Aquele dia se arrastava deitada novamente na cama fitava o teto, agora não procurava estrelas, ainda era dia alto lá fora, nada iria encontrar. Como uma projeção seu aniversário de seis anos passava diante de seus olhos, foi o primeiro após o abandono do pai. Enquanto colocava o vestido de cetim azul perguntava repetidas vezes para a avó que horas o pai chegaria, os olhos marejados dela contrastavam com a boca que repetia “logo”. Enquanto todos os seus amiguinhos se divertiam na festa, Luiza permaneceu sentada no mesmo canto da área, as pequenas mãos ansiosas seguravam a barra do vestido como se ali residisse toda a esperança em ver o pai voltar. Na hora de soprar a vela não houve sorriso, saiu correndo em direção à porteira do sítio e chorou um choro amargo demais para uma criança tão pequena, foi ali que a estrela que residia em seu peito entrou em colapso. Fechou os olhos para esquecer aquela cena, mas estava impregnada por essas lembranças, chorou como se ainda fosse uma menina de seis anos. Ela já havia até se esquecido de como era desaguar. A vozinha estava tão linda em sua visão que tentava ao máximo reprimir essas lembranças, pensar nela era como alimentar seu inferno particular. Agarrava-se ao lençol da cama para se manter presa a realidade, queria estar agarrada a porteira do sítio, cercada pelo jardim de heras que se formava na extensão do muro, ainda podia sentir o cheiro das flores da avó
Levantou e o seu corpo sentiu a fraqueza da solidão, o coração batendo em contratempo, descompassado com o mundo. Não conseguia ser diferente, se arrumou frente ao espelho sem nem se dar conta de sua beleza, sua alma pesava tanto que forçava a corda do sentir em direção ao precipício. Em seus olhos percebia que a queda logo se aproximava, mas será que seria tão ruim assim mergulhar de vez nesse abismo?
Foto: Kymberlie Dozois