Cinco crônicas e dez frases de Cláudio Portella
Cláudio Portella (Fortaleza, 1972) é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003; segunda edição, 2015), Melhores Poemas Patativa do Assaré (2006; edição e-book, 2012), Crack (2009; segunda edição, 2015), fodaleza.com (2009), As Vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011), Net (2011), Os papéis que meus pais jogaram fora (2013), Cego Aderaldo: a vasta visão de um cantador (2013; edição e-book, 2014), Elíptico (2014), O livro das frases & outros diálogos (2014), Picos Hotel (2015), Fraturas de Relações Amorosas (2016), O panfleto das frases & demais textos (2016), Paraphoesia (2017), Melhores Poemas Torquato Neto (2018; também em e-book), Crônicas Velozes (2018), Melhores Frases, Sentenças e Pequenos Contos de Cláudio Portella (2018) e Maresia do Rock – Recriada parceria de Raul Seixas & Paulo Coelho (2019). Ganhou o concurso de conto da UBENY – União Brasileira de Escritores em Nova York. Para comprar as obras, entrar em contato com o autor pelo email: claudio.portella@gmail.com.
As crônicas e frases publicadas abaixo foram retiradas dos livros Crônicas Velozes e Melhores Frases, Sentenças e Pequenos Contos de Cláudio Portella.
***
CONTRASTES DENTRO DE UM
Não sei por que deu vontade de escrever uma crônica acerca de um assunto aparentemente bobo. Coisa de cronista, certamente. Vamos lá! A capa de um LP de Jardes Macalé (não confundir com o ator Paulo Silvino, embora o Macalé também seja ator; é só olhar bem para a cara e o crachá) lançado em 1977 e que tem por título ‘Contrastes’.
Ele está na capa beijando a então sua mulher, a escritora Ana Miranda. O músico é mulato e a escritora é branca, daí o contraste. Uma bobagem, mesmo nos anos 70.
O casal se separou e a mulher proibiu sua imagem na capa, houve então uma porção de situações menores que fogem ao centro da questão que é o tal do contraste. No singular não, no plural, como na capa do disco. Para além da questão de cor, o casal parece intuir os verdadeiros contrastes de uma relação conjugal. As diferenças podem emanar e tornar eterna uma relação a dois, como efêmera.
Parece que o principal contraste, dos muitos que a capa do disco evoca, é o de um homem, um músico, e uma mulher, uma escritora, num beijo de língua que confirma o adágio que diz que dois bicudos não se beijam.
*
CRÔNICA PARA O UMBIGO DO POETA
Pensava ter uma pá de opções, percebo que a única opção é escrever. Ficar colado ao computador. O vulcão interno, a explosão, a repetição de um monólogo inacabado é a vivissecção do passado sempre presente. O que é o presente? Um pacote bem embrulhado, com dedicatória e laço multicor?
Cada nova crônica é a confirmação mais que científica que o presente não existe.
Abandonei a universidade, não porque não estivesse preparado para ela. Ela é que não estava pronta para minha poesia. Sou a medida da minha poética. Quando entrei na universidade, a primeira coisa que fizeram foi pegar a trena e medir minha poesia. Mediram, deu 1mm, um milímetro de puro medo. Medo estampado no meu cabelo comprido, meu rosto pálido, meu corpo magro. Disseram, você está terminantemente proibido de entrar no departamento literário. Aliás, nem passe em frente. Seu medo pode ser contagioso. Minha poesia… Ia eu dizendo. Quem lhe deu o direito de chamar minha? Você é indizível. Você é uma chaga. Você é o dedo sujo na sopa de letrinhas dos nossos poetas. Nossos Poetas sim! São Mestres! Você é o aluno, quer dizer, você é o indizível. Nossos Mestres medem 100.000.000 de metros cada um deles. Então peguei meu (eu não posso chamar de meu!) 1mm, enrolei, meti de baixo do braço e fui embora.
Tenho enorme dificuldade em falar as palavras poesia e poema. Sou tagarela! Mas, na hora de falar uma dessas palavras, emudeço. Tento! TEnto! TENto! TENTo! TENTO! Cadê? Nada! Suo, ruborizo, encho a boca. Não dá! Poesia e Poema para mim são palavras sagradas. Seria mundano demais se me fosse permitido. Logo eu! O aluno!
Vivi uma emoção forte, tão forte quanto a pancada que Dom Quixote levou na cabeça. Desde então meu cabeção chato passou a ver estrelas, e eu pensei ser uma delas. Engoli o Rei e lutei com tudo que tinha e não tinha contra o papel em branco, contra o dedo parado no ar apontando para meu nariz, contra o velho que me botava para dormir lendo suas poesias. Mas o tempo foi passando, dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos e o dedo sempre apontado para mim. Proibindo-me de ir além do que estava escrito, de passear sozinho à noite. Todas as farras e bebedeiras eram em grupo, ai daquele que se embriagasse sozinho! Mas não me sinto sozinho agora, agora tenho o computador.
Poetas, o mundo não é o umbigo!
*
TODO DIA É ROUBADO DA MORTE
Não importa quem seja você, fato é que pessoas não viram árvores como eu delirava ou fazia poesia (dá na mesma!), elas vão embora, são mortais. Aqui estou, nessa crônica, usando a técnica de sempre: Enumerando lembranças ou a falta delas para escrever ou não escrever sobre alguém que a morte levou. Agora foi o Belchior, com setentinha. A mesma idade do Jerry que se foi há alguns dias.
Vi shows do Belchior. No primeiro adentrei o Cocó com a frase zumbindo em meus ouvidos “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Tanto faz ano passado ou esse. Sempre chega o dia.
A música dele muita gente conhece. E seus quadros, suas traduções do francês? Ou seriam do espanhol? Ele esqueceu o francês ou eu esqueço o que escrevo?
Esqueçamo-nos os dias e os anos, assim não haverá o ano que passou nem o que estamos. E Belchior continuará no nosso seio, se é que algum dia saiu.
*
JOGOU ATARI HOJE?
Não consigo dormir com o som que vem de todos os lados. Levanto, pego café na cozinha e saio para o quintal. Dou voltas, chupando o café quente e fazendo um barulhinho, na planta cheia de margaridas vermelhas. As margaridas murcham à noite e pela manhã se abrem em vermelho. Me irrita o barulho que faço ao chupar o café e derramo o que resta nas margaridas. As margaridas são vermelhas e as rosas são azuis. Lembro da frase feita que ouvira uma criança falar. Saio a repetir enquanto volto para o interior da casa. O telefone desperta:
― A consulta está marcada para hoje!? Irei, irei sim.
Vedo com papel higiênico a porta do banheiro do CAPS/AD (Centro de Atendimento Psicossocial – palavrinha esdrúxula! – Álcool e Drogas) e fumo uma pedra de crack. A mesa da assistente social fica próxima ao banheiro. Atendentes, farmacêuticas, médicos, psiquiatras e psicólogos transitam lá fora. E eu lá, fumando crack e me olhando no espelho; vou pra d’baixo da pia; tiro o ralo e baforo pra dentro; dou descarga e a porra emperra, por sorte consigo consertar.
Depois despejo detergente na pia, no chão, e limpo com papel higiênico. Saio do banheiro eletrizado. Vou ao bebedouro e enquanto sorvo água, minha psicóloga vem falar comigo. Creio que ela percebe minhas pupilas dilatadas, minha cabeça distante. Respondo de maneira perdida e educada e saio para o jardim.
Meu psiquiatra falou que 85% das pessoas com mais de 60 anos têm algum tipo de demência. Disse também que 5gr de crack equivale a um ano de leitura perdido. Nunca li um livro na vida
No jardim, encontro a alma de meus pais conversando com o espírito da mãe de um grande amigo. Seus pais e os meus são da mesma terrinha, cheia de conhecidos. Mundinho pequeno! Do tamanho da pedra que acabará de fumar no banheiro do CAPS/AD.
*
EU TE DISSE MAMÃE ROSE
Dentro da favela capto uma Playboy com uma Big Brother na capa. Percebo-a mais talentosa nas fotos. Sigamos assim, com um tropeço aqui e outro na altura da cabeça, a que vier primeiro.
Dentro da favela me capto e me pego novamente cantarolando uma rima fácil. Fácil demais para quem olha da janela de um barraco e vê que tudo está perfeito, que a divisão é exata, que a prova dos nove sempre será zero. Zero à direita, sempre.
Eu odiando os verbos de ligação. O paletó não permite um movimento flexível. O nó da gravata me trava a língua, lalofobia!
Ir para onde quando todas as direções só levam a repetidas histórias infantis, à moral da história, a canções insuportáveis e a um estilo fracassado de dizer as coisas?
Querem ser feliz? Mania besta de querer ser feliz! Esqueçam a felicidade! Felicidade é uma terceira dentição, um cachorro com lepra às minhas costas. É qualquer troço, um pedaço de pau, um caroço de milho, um livro qualquer achado com coprólito em relevo. É uma cagada qualquer, num país qualquer.
As cores da bandeira é pretexto, o que vem antes do texto, segundos antes de abrir os olhos e fazer força.
*
celular pode não ser o melhor amigo do homem, mas é o mais fiel.
*
Talvez a diferença entre nós e nossos antepassados seja a lâmina de barbear.
*
Um país sem escritores é pobre. Um país onde todos se julgam escritores é mais pobre ainda.
*
Se metade dos que se consideram poetas fossem médicos, o Brasil não estaria na situação em que está. Mania besta de querer ser poeta.
*
Ítalo Moriconi listou vários tipos de poetas. Segundo ele, há o poeta crítico. Isso é de uma redundância sem tamanho. O poeta, por natureza, é crítico. Poesia é crítica. Então vem o poeta é diz: “odeio os críticos!”. Ou é alienado, ou não sabe o que produz.
*
Talvez não devesse ser tão crítico. Mas porra, eu sou poeta! E nunca serei um poeta laureado, ganhador de prêmios. Ou que tenha centenas de curtições quando escreve uma bobagem qualquer. Não sei ficar quieto, sem criticar, sem me autocriticar. Não quero ser o poeta do poema hermético, da confraria, ou do mercado. Sou o poeta do cotidiano, do ridículo, do discurso aparentemente vazio e cheio de dor.
*
Andando na rua, um garoto me reconhece e pergunta como se faz poesia para conquistar menina. Fico olhando para ele. Pensando no que dizer. Minhas esposas me deixaram por eu ser poeta.
*
A melhor forma de ser esquecido é ser lembrado no Facebook.
*
O país é tão letrado que os livros que fazem sucesso são para colorir.
*
Paulo Coelho é o Amado Batista da literatura brasileira.