Cinco poemas de Alice Neto de Sousa
Alice Neto de Sousa @alicensousa (1993), poeta entre outros ofícios, é uma escritora portuguesa, com raízes em Angola, licenciada e mestre em Reabilitação Psicomotora, a especializar-se na área da surdez.
No Brasil, viu o seu poema “Terra” (2021) dar nome à coletânea “Do que ainda nos sobra da guerra – e outros versos pretos” publicado na Editora Ipêamarelo. Pelo Selo Mirada, publicou os poemas “Passa o tempo” (2021), "Beijo" (2021) e “A um amor con(tu)ndente” (2020).
Inquieta por natureza nas palavras e nas escolhas, gosta de liberdade de pensar e de sentir.
***
Terra
Alice Neto de Sousa
Pé ante pé,
Na cascata de missangas largadas,
Mergulhas no carvão das lágrimas frutadas,
Balouçadas nos teus olhos castanhos terra,
Ceifados, arqueados, rotos,
Do que ainda nos sobra da guerra.
Sousa, A. N. (2021). Terra. In A. Pinheiro (Ed.), Do que ainda nos sobra da guerra – e outros versos pretos (1ª ed., p. 106). Itajaí:Ipêamarelo. ISNB: 978-65-990494-5-3.
*
Beijo
Alice Neto de Sousa
Combalida,
No cume da planície,
A humedecer o desespero.
Em beijos subtraídos,
Pintados a giz no cabelo.
Borrada em tons de canela,
Sem cor, sabor ou cheiro.
Apanhada em falso no anzol,
Levada, soprada no vento,
Devolvida em água ao teto,
Nublado, das chuvas do peito.
Sousa, A. N. (2021). Beijo. In T. Oliveira (Ed.), Teus Olhos Rímel com Poesia (1ª ed., p. 36). Recife: Selo Mirada. ISNB: 978-65-89460-05-3.
*
De ti
Alice Neto de Sousa
De ti, guardo os dias mais belos,
As chuvas mansas do olhar,
O arvoredo dos teus cabelos,
O ruído do teu bigode a amansar,
Desfeito nos sorrisos mais ternos,
Navegamos em barcos, a ficar.
Sousa, A. N. (2019). De ti. In F. Gonçalves (Ed.), Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea “Entre o Sono e o Sonho” (1ª ed., Vol. XI, Tomo I, A-J, p. 41). Portugal: Chiado Books.
*
Solidão
Alice Neto de Sousa
E nos silêncios dos latidos sem força,
Nas corridas em que estou sempre atrás,
Nos dias em que não sou mulher nem moça,
Em que a minha dor se lê como um cartaz.
Não encontro capa ou máscara que me valha,
Céu ou terra que me leve,
Camisola ou camisa de malha,
Só esta solidão me serve.
Sousa, A. N. (2021). Solidão. Jornal Relevo (ed. abril, nº 8, a.11, p. 21). Brasil: Curitiba. ISSN 2525-2704
*
Passa o Tempo
Alice Neto de Sousa
Passa o tempo, o cabo e a vassoura.
Varres a seco, limpas a alma a pente fino,
Carcomida, com a comida ainda ao lume,
Bem posta à mesa, para o menino,
Como é do costume.
Nem ousas queixar do trabalho,
Que ingratidão,
Ao menos há dinheiro, para pensar no pão.
Comam bolo, já o diziam,
Cuspido no resto do manjar a que fediam.
Passa o tempo, o cabo e a vassoura.
No balde inafundável com que te inundas,
Sem nem dar por isso,
Porque não gritas o teu nome,
Quando te chamam mestiço?
Na bainha da saia para a patroa,
Com que passas a agulha pela saliva
Curvas a língua quando te param,
No meio de toda a praça,
A mostrar a foto da tua mãe,
A senhora lá de casa.
Com a capa branca, em castanho, pelada na pele.
Nem pestanejas na palavra maldita,
Na frase mais ao contrário,
Que dignidade te resta,
Entre este e aquele armário?
Baixas a cabeça, é esta a herança?
Que mais podes tu cobrir debaixo dessa trança?
Passa o tempo, o cabo e a vassoura.
Sousa, A. N. (2021). Passa o tempo. In T. Oliveira (Ed.), Laudelinas (Vol 1, 5ª ed., p. 49-50). Recife: Selo Mirada. ISSN: 2675-6803.
Felipe
Nossa, maravilhoso!