Cinco poemas de André Capilé
André Capilé nasceu na margem mansa do Sul Fluminense em 1978; residiu em Juiz de Fora – MG, onde se graduou em Filosofia pela UFJF, em 2009. Cursou Mestrado e Doutorado em “Literatura, Cultura & Contemporaneidade” pela PUC-Rio. Publicou, em conjunto com Carolina Barreto, dois (não pares) (Anome, 2008); a plaquete zangarreio (2011); rapace (TextoTerritório, 2012); balaio (SeteLetras, 2014) e muimbu (Macondo, 2017).
***
Mbambi
para Ricardo Domeneck
velozes
e não por fuga
cervo & coelho
se da mesma banda
não contendam
mato a dentro
bulir é com destino
não por cevar
o rebanho observa
à mansa
há quem por atrevido
nasceu
não pela manada
do cervo na pisada
de quem passa
a presa no debando
pelo arco
do caçador o caçado
*
Kasanje
1.
lembrar
lembrar do barro
vermelho lembrar
do barro vermelho
do barro vermelho
lembrar
2.
dessarte
para mula de carga
só boa sova ao fim
da feira
mas o do não
vem
bom o quem sabe
de si
rajado
vai morder até
3.
nem um de mão
pensa vai cardar
algodã
nem um se des
tina mais a malte
nem um serena
à sola da massa
algodã
nem um à missa
mais se submete
a cozinha sinhá
é longe pra lá
de algodã
não há mais
nem um
melhor
em cubata vivo que
servir sem goiva
ou
desgovernar-se
cedente à focinha
algodã
à manhã no soalho
ao sol
no sul o grosso
do sal demuda
venta algodã
venta daqui
4.
em fogo alto corda
ao toucinho e salsa
incrementa quem
o quê bem aqui se
samba
mandinga
5.
no baile da malandra a
sala manda bossa nova
mas
se não te fez
bom alvo vai
ou vai dar
valsa
6.
quando a bilha
na peneira vacila
vem do ruído das
agulhas nos discos
o salve
[De rapace (2012)]
*
Luanha
I
um galo de véspera
na matina sabe que das gaiolas
não sai invento
poleiro é para quique
não voo
II
não se amansa
em viveiros
por dentro
cada canto e ala
selam mais que a rasura
de ciscar as torrinhas
nas manhãs
III
no quintal uma criança
brinca dos grãos uns ciscos
lá
o olho no fundo
sua fome verde
IV
campeiro feito
na função orienta
o pasto
e curra o músculo
traído na baia
V
desconhecem do chitão
a combinação que tranca
à intimidade da banda
os ornamentos na cômoda
fora de que mundo
os tubos de pano
esticam o ensaio dos tules?
VI
ok ir até onde o passo dá pé
mas que é que há de comer do córrego?
ok ir com a correnteza mas
como se nem os peixes bóiam?
ora da cartilha do ensina a pescar
a reza sabem somente os piscinas
não sabem ainda de que solas são feitos
os do lado de lá da insolação
do barro vermelho?
*
Lazeado
Saiu de casa com
um doce na boca.
Na cara, o sorriso
de um devotado
prático, se mescla ao barbante
da patuléia. No corpo, as idéias
em gestos médios. Nos bolsos,
a carteira e o analgésico — a que
se apega como o crente à cruz.
Deus falte em dobro: a ladeira, a ladainha.
[De balaio (2014)]
*
sentou-se entre a fumaça e os edifícios
lembrando-se dos bois a meio pasto
(à espera da ração em seus currais
havia paz em cada gesto impresso
naquela cainçalha sem remédio
no mijo que explodia do silêncio)
da nata azeda na fuligem
a história repetia só por hábito
a vasca minúcia das inchas
(à cura de um desvio pelo reto
a bile de um pintor que se recusa
a pilhar dos entulhos de seus mortos
cabeças estacadas nessa guerra )
houvesse um dia em que a fúria
não encontrasse o intestino
berrando as rotas de fuga
como o ronco de um suíno
ao confrontar o porrete
na marca de seu destino olhai
por cima da beleza a voz
da sova ouvi um grito só
e a firma cai da foice
nada mais faz diferença
se teu cabelo é um ninho
nos dedos da ofensa
doando infernos na posse
de um pincel que emplastra
sua cara limpa no retrato
[Poema publicado em livreto da Mostra Embate ao Fascismo – 80 Anos de Guernica na UFJF, também na Revista Modo de Usar em 2018]