Cinco poemas de Camila Assad Quintanilha
Camila Assad Quintanilha nasceu em Presidente Prudente (SP) em 1988. Escreve e traduz, é autora de Cumulonimbus (Quintal Edições, 2017) e do livro eu não consigo parar de morrer (Urutau, 2019). Foi contemplada com o prêmio ProAC-SP com a obra Desterro, que será lançada neste ano pela Edições Macondo.
***
1)
M. não está conseguindo
se lembrar de seus mortos
o rosto da mãe, o gosto da
nicotina exalando pela
pele ao fim do dia.
*
é como se o passado fosse
um túnel de desenhos animados
em preto e branco arranhados
em uma parede.
ela ainda está tentando.
pensa em bois e plumas,
pensa em como carregamos
sempre conosco um mugido
de tristeza.
uma memória extinta é um país que sumiu do globo terrestre
hoje vou contar todos os
melros entre a prisão
e o Walmart onde agora
na sua tristeza galopante
um homem careca soa a
buzina no carro, onde um bebê
balbucia pela primeira vez
um som parecido com “água”,
onde a namorada — com toda sua
infelicidade — prende com um grampo
a franja recém-cortada.
*
agora mesmo
na emergência
no ápice da crise
ao lado da enfermeira
diz que se sente enterrada
como uma mosca no âmbar
como as tvs da sala de espera
e gira a ampulheta dourada
do desespero.
*
eu penso em quando eu era
uma criança, em quantas vezes
o mundo parecia que ia quebrar,
mas então, milagrosamente,
impiedosamente, não o fez.
*
2)
nunca fomos tão ingênuos
mas a materialidade das superfícies
encarando arestas brutas
invadiram nossas mãos.
toda mão é ferramenta
serve para estancar o sangue
do porco recém-abatido
serve para contar as horas
em que o sangue permanece quente
serve para acariciar os cabelos
consolar: não chore o abate suíno,
a vida é muito menos que isso.
*
3)
eu lhe peço para que não olhe
a saia rodando com o vento
e com os movimentos bruscos do
quadril adentrando a trigésima
temporada invicta. tem algo de
maligno no teu olhar, por isso não
note a unha roída, o pó compacto
ressecado no compartimento de
organização de maquiagens; é
hora de começar a escrever
poesia em bactérias e esperar
pela contaminação. o ambiente
anaeróbico favorece o desaparecimento
das doenças incuráveis. a pelúcia
ainda está na sua cama, mas
eu não me atrevo.
*
4)
construo as ruínas pra dizer que já estive
aqui. mesmo nos dias de feira eu vinha
acampar nos seus quintais sem verde.
mesmo a pé eu vinha, exalando fogo
pelos buracos do nariz, expelindo os
órgãos, como se não me fossem úteis
assim como saber que o coração de um
peixe tem apenas duas cavidades e o dos
anfíbios três.
*
5)
eu esqueci nome da minha mãe
declarei guerra contra a Suíça. me
aliei aos alfaiates que restaram na
avenida São Luiz, vamos costurar seu silêncio.
é mais que promessa, veja, o fim da manufatura
me permite ter três jogos de lençol
— embora nenhuma cama
Regis assad
A poesia mesmo que pesada alivia a alma. A Camila tem um jeito próprio e estilo único.
Adoro Seus poemas.
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