Cinco poemas de Cesare Rodrigues
Cesare Rodrigues nasceu em São João da Boa Vista em 1984. É autor de caso fossem ursos [Empório do Osório, 2016] e da plaquete por um detalhe na organização dos átomos.
Os três últimos poemas da seleção abaixo são inéditos.
***
Deu no jornal: a Christie’s vai leiloar a arma
a velha Lefaucheux
com que Verlaine acertou Rimbaud
quando romperam em Bruxelas.
Está em todo lugar
alguém vai poder comprar
a velha pistola
encher de pólvora
e tocar bala em quem quiser
em Bruxelas,
anywhere.
[de por um detalhe na organização dos átomos, 2018]
*
O poeta vai se atrasar para um compromisso importante
ele sabe que é realmente importante
sabe que o atraso será mal visto
mas sabe que é inevitável
porque poetas costumam se atrasar para compromissos importantes
o poeta aperta o passo
o poeta anda convicto
o poeta nem olha pros lados
o poeta precisa evitar distrações
precisa se atrasar menos para um compromisso importante
ansioso, o poeta erra o caminho
ainda que não errasse, chegaria atrasado
o poeta até tentou se antecipar
deixou tudo pronto
saiu de casa mais cedo
estudou o melhor caminho
não é de seu feitio se atrasar
mas sabe que os compromissos importantes têm dessas fatalidades
e com ele não seria diferente
ao menos desta vez
às vezes acontece de o poeta não se atrasar
às vezes o poeta até precisa esperar pelo compromisso
mas os compromissos que se atrasam mais que o poeta geralmente não são importantes
este é um compromisso importante
é uma fatalidade, pensa o poeta, mas ele vai chegar, logo vai chegar, todos sabem
no fundo, ainda antes que tivesse o compromisso, o poeta já sabia que iria se atrasar
até o compromisso importante já devia esperar pelo atraso do poeta
[de por um detalhe na organização dos átomos, 2018]
*
Quando Cristóvão Colombo parte pela quarta vez à procura do caminho para as Índias encontra tempestades, que avariam a frota e os obriga a aportar no Caribe.
Sem condições de seguir, precisam convencer os nativos a trazer-lhes comida enquanto esperam por um socorro mais demorado que o fim da hospitalidade.
Ciente de um eclipse por acontecer, o navegador ameaça esconder a lua se os nativos não ajudarem.
Aterrorizados, vendo a divindade desaparecer no céu vermelho, os nativos precisaram implorar pelo perdão dos forasteiros e seu Deus.
*
No museu de história natural
À direita, podem ver uma árvore.
Em tempos ancestrais, essa região era coberta por árvores
de diversas espécies
diferentes espessuras dos troncos
e tons de verde nas folhas
algumas davam frutos
outras chegavam aos 100 metros
e há quem conte sobre uma
que viveu mais de 10 mil anos
onde um dia foi a Noruega.
*
Meu suicídio
Meu suicídio foi num hotel cinco estrelas em Veneza.
Fiz questão de cruzar o Atlântico para morrer com glamour.
Meu suicídio foi depois de um café da manhã dos deuses
num lugar onde jamais poderia pagar o preço.
Meu suicídio foi saltando de uma cobertura gourmet
depois de arrombar a porta e incendiar todas as fotografias dos granfinos.
Meu suicídio foi chocando uma Ferrari roubada a 250 por hora
no muro de uma Associação de Proteção aos Privilegiados.
Meu suicídio foi me enforcando dramaticamente com um cinto
depois de recitar um poema revolucionário.
Meu suicídio foi como homem bomba
explodindo uma votação vergonhosa no Congresso Nacional.
Meu suicídio teve cobertura da imprensa
e comentários ao vivo nas redes sociais.
Meu suicídio parou a Avenida Paulista, mas os passantes
pensaram ser uma manifestação pela intervenção militar.
Meu suicídio aconteceu primeiro num sonho,
depois meticulosamente na vida real.
Meu suicídio foi precedido de uma oração.
Só Deus sabe o que um suicida ateu pode encontrar do lado de lá.
Meu suicídio sucedeu um voo livre sobre um monumento badalado.
Algumas crianças perguntaram se eu era um pássaro.
Meu suicídio estraçalhou meu coração.
A sujeira ainda deve estar sendo limpa por alguém designado.
Meu suicídio foi gritando como um carneiro desesperado
enquanto os espectadores comentavam que eu poderia ter sido alguém melhor.
Meu suicídio é acordar todos os dias para cumprir o meu lugar na engrenagem.
Meu suicídio está em cada palavra, em cada gesto, em toda parte.
Meu suicídio é este poema.