Cinco poemas de Fábio Neves Marcelino
Fábio Neves Marcelino nasceu em Lisboa em 1987.
Os quatro primeiros poemas integram o livro Canto Irregular (Averno, 2018), o quinto é inédito.
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Uma fresta na parede
pode iluminar uma casa inteira
*
Um homem espera
por um rio que o venha buscar
Lá fora a chuva
encharca a roupa estendida
Tempos houve em que esperei a luz que precede o trovão
como quem pára para escutar a idade
*
à memória de Luiza Neto Jorge
Esperar um reino por vir
um corpo que se escreve
Pouco a pouco
o lume queima a corda
e a manhã cai
no chão deste país
Sobrevive a liberdade do suicídio
o veneno do quotidiano
que nos empesta as veias
ou um pássaro em voo rasante
numa espécie de homenagem póstuma
*
De manhã os rios atravessam a cidade;
à noite os corpos regressam nus
a tempo de ver a luz da meia noite.
Perguntam: ainda há mãos
que transportem lanternas?
O mundo trauteia canções de marinheiros,
assistimos ao milagre da reprodução dos naufrágios.
O desânimo atravessa as ruas
entregue pelo carteiro
E eu respondo: ninguém ama
sem morrer
O entulho que suja
é o que faz o poema
*
Antropofagia
Para o João Neves e o André Borges
Sentados a ver
os frutos morrer:
foi essa a vocação
que herdámos
do fim da juventude.
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(Fotografia de Nuno Ferreira Santos, tirada para o jornal Público)