Cinco poemas de Fernando Luís de Morais
Fernando Luís de Morais (Cro Magnus) é poeta, tradutor, professor e pesquisador. É licenciado em Letras (Português/Inglês), bacharel em Tradução (Francês/Italiano), especialista em Estudos Avançados de Língua Inglesa e mestre em Teoria e Estudos Literários pela UNESP de São José do Rio Preto. Atualmente, é doutorando na mesma instituição, onde desenvolve a pesquisa Literatura (d)e resistência: o grito aguerrido de escritores quare, cujo objetivo é resgatar a voz silenciada de autores negros-gay. No referido instituto, atua também como um dos professores da disciplina “Literatura, Gênero e Raça” e como membro do Grupo de Pesquisa Gênero e Raça. Conta com poemas em diversas antologias e é poeta convidado da Revista Bem-Estar, de São José do Rio Preto.
***
Cântico ao feminino
Atualizem os modelos de relações pessoais:
abaixo os paradigmas de universalidade!
Ideologias fundamentalistas,
assentadas em bases biológicas,
são cordas bambas,
cabos vulnerabilíssimos
prenunciando a inevitável queda
sem o respaldo de rede de proteção.
Da face maciça da lona, os lábios se aproximam
num beijo certeiro.
Vidas pautadas pela resistência –
pelas dores,
por horrores –,
pertinazes,
relutantes às determinações contrafeitas,
aos sabores artificiais.
Revestidas de orgulho e firmeza,
esculpidas em proposições poéticas,
elas são muitas, e múltiplas, e tantas, e plurais:
revolucionárias,
(ex)guerrilheiras,
sufragistas,
radicais,
socialistas,
donas de casa,
operárias,
camponesas,
religiosas,
espiritualizadas,
africanas
asiáticas,
latino-centro-norte-americanas,
oceânicas,
antárticas,
europeias,
negras,
mestiças,
brancas,
ricas,
classe média,
pobres,
do norte,
do sul,
de leste a oeste
reais,
fictícias,
feministas ou não.
Interseccionalidades penetrantes,
mil entrecortes,
e elas, entretanto, persistem.
Rasgam verbos,
(des)organizam sintaxes,
(re)inventam línguas,
tingem em tons arrebatadores páginas e telas,
conturbam gramáticas pretensamente universais.
Transpondo fronteiras,
são Conceições Evaristo,
Carolinas Maria de Jesus,
Tatianas Nascimento,
Gilkas Machado,
Chimamandas Adichie,
Mayas Angelou,
Rupis Kaur,
Sylvias Plath,
Florbelas Espanca,
Adílias Lopes,
Virginias Woolf,
Françoises Sagan
Rosanas Paulino,
Fridas Kahlo
Gradas Kilomba…
Trazem consigo
a lição basilar –
irrefutável:
a necessidade de,
resgatadas do esquecimento,
presentificarem-se em terrenos outros –
visibilizadas,
audíveis,
livres,
diferentes,
mas iguais,
protagonistas de suas histórias não registradas,
protagonistas de suas histórias oficiais.
*
Corpo insubmisso
Encara-me!
Leia-me minuciosamente!
Meu corpo é uma manobra discursiva:
fala de mim,
fala por mim,
traduz-me.
Sou saturado de significados (impronunciáveis),
inventário irrefreável de vicissitudes,
complexo de 7 octilhões de átomos
a ponto de entrar em fusão.
Minhas fibras carregam as marcas de quem sou.
Cicatrizes na negra geografia do meu corpo
traçam um mapa do que passei,
dos territórios pelos quais transitei,
dos percalços que superei – não incólume:
flagelos,
discriminações,
xingamentos,
acusações,
interdições,
socos,
pontapés.
Violências simbólicas e físicas
raramente encapsuladas.
Beirei à morte: quase me precipitei de um abismo,
prestes a tocar as profundezas abissais.
Reassumi e ressignifiquei meu destino:
sou preto – sim!
Sou pobre – sim!
Puta não.
Mas e daí se fosse?
Sou dono do meu corpo:
reinvento-me e redescubro-me,
perform(atiz)o-me em gêneros mil.
Meus lábios impregnados
do amargor da espessa saliva –
não do cuspe que você escarrou em mim
na tentativa atroz de aviltar-me.
Minha saliva é amarga,
visto que a minha língua é ácida, corrosiva.
Resisto e enfrento e imponho-me
às mecânicas e maquinações opulentas,
às ortodoxias mórbidas do seu despótico poder,
que me patologiza,
que me criminaliza,
que se esforça para fazer-me ruir.
Meu corpo é um exercício de insubmissão,
dinâmica de insubordinações.
Minha garganta liberta um grito visceral
contra os dissabores da sua desumanidade.
Minha diferença é escudo blindado
resguardando-me dos seus discursos de ódio.
Você há de reconhecer os meus valores (ancestrais),
seja para o meu bem,
seja para o seu mal.
*
Não, não toque nos meus cabelos!
Não me inquieta se me repito incontáveis vezes –
jamais será suficiente.
Não me inquieta se, em seus moucos ouvidos,
meus ecos reverberam:
não, não toque nos meus cabelos!
Não questione seu tamanho, seu volume,
ou, muito menos, brinque com eles (achando que é divertido)
numa tentativa imperfeita de demonstrar
que não recrimina a mim ou a minha raça.
Por favor, não se sinta no direito!
Minha estética não deve ser deslegitimada:
respeite meus traços, minhas heranças –
elementos da minha emancipação política.
Em cabeça de negro, cabelo crespo é palha de aço,
ruim, impermeável Bombril.
Em cabeça de branco, é, no máximo, rebelde:
fios prenunciando cachos milimetricamente elaborados.
Forjo fronteiras corporais
que não devem ser violadas, excedidas, transpassadas.
Minha aspiração não é desmedida:
meu desejo, simplesmente existir,
estranho aos parâmetros do branqueamento tirânico.
Quero uma poética decolonial do corpo,
uma poética antirracista!
Resisto aos padrões rigorosamente ditados,
às pedagogias de produção hegemônicas:
sou desimpedido para usá-los, meus cabelos,
como bem entender, como bem quiser.
Meu penteado não deve satisfazer seu eurocentrismo.
Meus cabelos são filamentos largos e negros
e livres, revelando meu empoderamento.
Não me inquieta se me repito incontáveis vezes –
jamais será suficiente:
não, não toque nos meus cabelos!
*
esquivo,
deslizo pelos cantos,
sútil e lentamente,
para, em mim,
silenciar-me,
embrenhar-me,
entranhar-me
no mais íntimo recesso,
na medula mais substancial
das minhas amarguras,
das minhas angústias,
dos meus traumas…
contrário ao renome,
aspiro ao anonimato,
a um rosto ilegível,
à invisibilidade
que me garanta a saída incólume.
que meus pesares, todos, em absoluta convergência,
esqueçam-me a face;
que se borrem as memórias, os traumas;
que, pela dor familiar e penetrante,
rompendo-me, sulcando-me, dilacerando-me,
eu seja inabitado.
*
kafkiano
o mundo está submerso
no mais profundo
de um permanente pesadelo,
um labirinto de Dédalo,
onde saídas não há.
o mundo está submerso
no mais permanente
de um profundo pesadelo
de desespero e desesperança,
onde curas são incertas.
o mundo está submerso
no pesadelo
mais profundo e permanente
sob o peso da perda
de milhares de existências.
o mundo está submerso
no mais profundo
de um permanente pesadelo
de vidas esfaceladas,
fragmentadas famílias arrasadas.
o mundo está submerso
no mais permanente
de um profundo pesadelo
em luto eterno,
em preto terno.
o mundo está submerso
no pesadelo
mais profundo e permanente
e, nas profundezas desse pesadelo,
o mundo se consome.