Cinco poemas de Gabriel Cortilho
Gabriel Cortilho é escritor, professor de História e mestrando em Educação na Unicamp. Autor de dez livretos autorais de poesia, entre eles A Transa dos Besouros Verdes (2016) e Golondrina Subterrânea (2018).
***
O CANCRO NIILISTA
respiro
atento aos que falam do amor
com uma faca de inox nas mãos
alertaram-me sobre as cinzas dos corpos
que tudo marcha pra aniquilação & se fode
: sem sequer uma mísera notícia de jornal
disseram-me que tudo
vai para algum buraco
no quarto de uma garota
que injeta ansiolítico nos olhos
noturno, ponho num comboio de ópio
cinco canções que alimentam o espírito
não serei o protótipo em miniatura da civilização cinza;
não morrerei engolido por quelônios nas Ilhas Galápagos
sangro nas sombras
como faz o bicho humano
ao longo dos séculos,
mas lembro dos anéis de Saturno
que pairavam sobre os cadáveres
enquanto os homens ilustram os seus cérebros
& bebem em garrafas arcaicas o Licor de Moscas,
os felinos degustam os próprios órgãos genitais.
soletrem a escuridão,
o vazio, a falta de sentido
prefiro o silêncio & a ternura
os únicos diamantes
possíveis
*
SOBRE A BREVIDADE I
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.
Agostinho de Hipona
i.
em algum
dia desses,
ouça-me bem:
vou abraçar Torquato Neto
esquecer as nossas dores;
nesse dia,
não haverá pulmão
capaz de suportar o peso
nos ponteiros dos relógios
ii.
mas quem diz
que vai, lembrou Vinicius,
não vai, porque quem vai mesmo:
não diz, e sabes que poeta é um fingidor
maldito & solitário em meio às multidões
quanto a mim, senhoras/senhores,
deixo a morte às almas cansadas
que decidiram enfrentar o Mistério
derradeiro
pois tenho andado com fome de tudo
atado às seivas, da carne ao espírito.
iii.
que as almas,
imersas na tristeza,
respirem feito sumaúma,
de sinistras raízes
para escreverem
sobre o que nasce
& não proliferarem,
jamais, o velho canto
úlceras, desencanto,
melancolias;
iv.
somente o tempo o tempo
o tempo, sempre, o tempo
pode abrir, com fúria,
as sendas dos corpos
: catedrais que as conversas
tentam — em vão — penetrar.
*
SOBRE A BREVIDADE II
i.
a vida
ainda é vida
antes do coração
entupir as artérias
antes dos homens
descobrirem-se mortos
nos vagões que os levam
a colecionar as lembranças
para tudo, ao final,
ficar registrado no caderno
escrito, na capa, silêncio
mineral
ii.
escreve-se: vazio
quando o quando,
na máquina do tempo,
transforma-se na breve sucessão
que evapora, e se dissipa.
quando os dias
são diluídos pelos deuses
& pesam sob a forma
oculta & cerebral
iii.
queria lhe escrever sobre metamorfoses
que há begônias no ventre das crianças,
mas ouvi
dos mortos
que os corpos marcham
para a sombra do não-lugar
onde dormem, calmos,
os nossos avós.
*
ENTRE VAGÕES E GRILHÕES
o escravo romano era preso por grilhões; o trabalhador assalariado está preso a seu proprietário por fios invisíveis. a ilusão de sua independência se mantém se mantém pela mudança contínua dos seus patrões e com a ficção jurídica do contrato.
Marx, 1885.
i.
lembra quando
nós as vimos
sobrevoando a aflição
dos seres humanos?
mas as andorinhas não são livres
como naquele dia nós pensamos
[estão presas às estações
& nós aos velhos grilhões]
ii.
talvez construamos
as nossas casas
a esperança? lutar
para que não cortem
as nossas asas
iii.
os poemas rimam?
confesso: tanto faz
andamos esmagados
nos vagões do metrô
enquanto o chefe do Estado
usa um terno de R$ 2.980,00
*
LIBERDADE ESCRITA COM B
o outro exercício de libertação… saia na rua
pois teu espírito decidiu dançar feito fêmea,
encerrou o claustro a angústia a catequese
sentiu que fomos talhados em expectativas;
menina, esqueça essa porra do teu cérebro,
fábulas conspirações sermões constipações
somos mais felizes ao sermos quem somos
beijar a boca do homem & a boca da mulher
& foda-se o Grande Outro, as vozes, o Juízo
sorrisos fétidos as tuas tias neopentecostais
cruze a rua & cante a beleza do teu arco-íris
mas fique atenta, pois corvos lhe espreitam;
lembre que tua dor não é a única do mundo
tristes lagartas continuam a tecer monarcas