Cinco poemas de Gabriel Morais Medeiros
Gabriel Morais Medeiros é autor do livro de poemas Andrômaca, quarenta semestres (Patuá, 2016). Pela mesma editora, participou da antologia Casa do Desejo (2018) e tem textos diversos publicados em periódicos virtuais, como Mallarmargens, Literatura&Fechadura e Revista Visuais. Trabalhou como professor de literatura durante 11 anos, em várias cidades do interior paulista.
***
Dicão
O trem saiu de Perus
às onze da manhã, contudo
só cheguei em
Botujuru
às onze e vinte, tentando
fugir do alagamento. Neste horário
uma profeta mandingueira, no cptm,
passava um
dicão, como um
professor de cursinho sempre tentou fazer
nas aulas-shows desta vida.
Vai ter é setenta graus em dois mil
e vinte cinco e o taxímetro da nasa
um taxímetro igual a este relógio aqui, ó,
esta pulseira esconde o arranhão no meu pulso
inflamado, e não deixa vocês verem
a doença-da-unha-de-gato
a doença-do-bico-do-polvo
a doença do mico, a doença
do peito-de-pombo, a doença-
do-pavão-que engatinha, a doença
que eu tenho, este reloginho à prova d’água
registrou uma escalada no pico de informação:
é isto, pessoal, todo mundo vai morrer no frio de julho, vão
ter que usar o instrumento de trocar para-brisa
para fazer desfibrilação cardíaca, a nasa
vazou essa mensagem em código porque as sondas
da nasa estão todas cansadas, elas
estão
cansadas de tanta repercussão, elas estão
sempre cansadas.
*
Chinchorro com Huelén, domingo, vinte e seis de agosto de dois mil e dezoito
ou sobre um motivo de Marcial
Vim até Santiago de busão, passando por sua casa.
Convencional ou ônibus-leito, você perguntou, quando decidi comprar a passagem,
e eis que respondi convencional, porque sou imortal. Vou de bumba convencional.
Agora, entre as ruas Chinchorro e Huelén
fumo, sozinho, um cigarro sabor melão,
num beco de domingo, amormaçado, às seis da tarde.
Apago a bituca na bocarra deste hidrante.
O caramelo esbranquiçado das montanhas amuralhadoras,
às ruas fantasmagóricas vai abafando, desde muito longe:
as neves, absurdas e derradeiras,
são arcanjões com
arcabuzes
(cujas culatras
ensolaradas devagar,
colapsam).
Prometo buscar uma maneira de reencontrá-la,
e de fazer com que suas anotações não desapareçam.
Noutras palavras, vou finalmente morar com você, caso seja possível.
Porém, por enquanto, não podemos fazer nada,
nenhum de nós está vivendo para si,
e nós sentimos os dias indo embora,
e se perdendo, e de que perdemos conta.
*
Loja de baclavas
As baclavas na vitrine
folheadas com o cobre das amêndoas
e o cromo dos cremes-pistaches,
cintilam com inexistência e fascínio.
São como cílios presos de relance
na polpa de um marca-texto.
*
Esfola sem partido: professorxs e prostitutxs em 17 teses
[livremente baseado em número 13, de Walter Benjamin]
1-Profs. e prosts.
desejam largar o ofício.
2-Profs. e prosts. pagam tributo ao charme e ao medo.
Com o charme se ganha a clientela; com o medo,
dela nos protegemos.
3-Profs. e prosts.: cama limpa,
lousa organizada.
4-Profs. e prosts.: quando alguém está em crise com a família
ou com as amizades indiferentes,
quanto recorre a tais profissionais…
5-Profs. e prosts. geralmente começaram a carreira devido
a um ideal libertário ou
à truculência do cotidiano.
Mas nunca por uma mescla das duas motivações.
6-Profs. e prosts. bem sabem que a ideia de aposentadoria lhes
é cômica ou desesperada.
E seus efeitos são sempre uma mescla dessas sensações.
7-Profs. e prosts. repetem um mantra:
“é perigoso ter proximidade com clientes, até mesmo
(ou principalmente)
em redes sociais”.
8-Profs. e prosts: por mais autonomia e consolidação
que tenham, nunca trabalham,
exatamente, para si.
9-Profs. e prosts. são suscetíveis a demonstrações de afeto,
mas menos do que aparentam.
10-Profs. e prosts. pressentem o tempo milimetricamente,
e rezam por sua passagem, por sua aceleração.
Mas muitas vezes continuam trabalhando, empolgadamente,
quando a sineta já lhes soou.
11-Profs. e prosts. iniciam a carreira já acreditando
que a era de ouro da profissão está perdida num passado longínquo.
12-Profs. e prosts.: mais do que pelo corpo ou pelas ideias,
é pela confidência que causam mais paixão.
13-Profs. e prosts.: para nós, o final de semana
é a apendicite do trabalho.
14-Profs. e prosts.: remove-se o giz como se remove a maquiagem.
E a ducha de água quente é a mais
doce das divindades.
15-Profs. e prosts.: se com as massas ocorrem disputas,
no tête-à-tête há festa e descontração.
16-Profs. e prosts. têm senso (não mania) de perseguição,
e estremecem bastante quando alguém
bate à porta, durante o exercício de seu ofício.
17-Profs. e prosts. se sentem livres entre quatro paredes,
justamente quando todos
dizem que estão mais escravizados.
*
Pequena quadra promíscua, 12 de junho de 2019
A batina serve ao monge
como um conje a outro conje.
E a Justiça, inda que ao longe,
tem a que sirva e lisonje.