Cinco poemas de Gleycielli Nonato
Gleycielli Nonato é indígena da etnia Guató-Pantanal/MS, ativista social e cultural, natural de Coxim Mato Grosso do Sul. Escritora, radialista, produtora cultural e atriz. Acadêmica de Licenciatura em Letras e Literatura na UFMS/CPCX. Membro da Academia de Letras do Brasil, seccional Coxim-MS, ocupando a cátedra n° 11. Autora dos livros Índia do Rio (poemas, produção independente, 2013), Vila Pequena: causos, contos e lorotas (folclore\ficcão, editora LIFE, 2017).
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Bicho e Gente
Fui homem e com força fui lutar.
E como um homem descansei ao acabar.
Fui guerreira e aprendi as artimanhas do meu cavalo.
Fui “tropeira’ pantaneira e fiel ao meu cerrado.
Fui pescador solitário;
Sonhador acordado.
Vingativo, apaixonado…
Me embriaguei bebendo vinho,
Fiz meu caminho sozinho.
Achei amigos, inimigos.
Caí, me levantei.
Sofri, me apaixonei.
Tomei caipirinha ouvindo “Avorray”;
Fui o orgulho e o pior pesadelo do meu pai.
Fui fera pintada sedutora, amada, inocente.
Fui bicho e fui gente.
Dancei a polca paraguaia.
Sobrevivi à malária;
Matei um, mas pari dois.
E nunca deixei nada para depois.
Pois desta terra de tudo um pouco eu fiz,
Não me arrependo de nada que quis;
E se morrer hoje…
Vocês podem ter certeza que morreria feliz.
*
Índia do rio
A minha vó quando nasceu
Tinha seu corpo coberto por pena azul;
Depois viu que já nem sequer estava mais nu.
A minha mãe, desaprendeu a linguagem de meus ancestrais.
Minha avó, morreu de desgosto,
Minha mãe, morreu de fé.
Mas quando pari o meu filho nas águas do rio Jauru
Eu sabia o que podia me acontecer:
Eu sempre tive braços para poder plantar,
Mas eu nunca tive terra para poder colher.
Vi meu menino morrer três vezes:
Primeiro de fome;
Segundo de peste;
E depois de saudade;
Pois meu homem que desceu esse rio dizendo que voltava,
Eu nunca mais senti o seu cheiro.
Ele fugiu como o meu pai também fugiu.
E ainda querem nos tirar nossas terras,
E ainda querem nos tirar nossas crenças, nossos costumes.
“AH! Nophoyo Nophy Heraquejhá Kareguajá;”
“Nophoyo Nophy Heraquejhá Kareguajá”
“Nophoyo Nophy Heraquejhá Kareguajá”
Traga-me de volta o meu povo,
O meu filho que a fome matou,
E meu ventre que esse rio levou.
*
Olhos tristes
A poeira embriagando o ar,
É tempo de seca.
Seus olhos querendo chorar,
É dia de reza.
As rugas marcam o seu olhar,
São tão negros, quase azuis.
O seu rosto marcado pelo tempo.
Não sei se a saudade te leva
Ou se é levada pelo vento.
Suas mãos já tão cansadas,
Dedos marcados, feridas abertas.
Uma vida de espera.
Sentada no banco, em uma praça de rua,
Lembrando-se das terras que nunca foram suas.
Cabelos brancos, bem amarrados.
Já foram negros quando menina do mato.
Ah estes seus olhos vagos;
Enxergam a tribo lá do outro lado.
Hoje estão enterrados em memórias do passado.
“_perdi o grito do guerreiro,
Perdi a pintura de meu corpo inteiro;
Minha herança morre comigo…
Não tenho herdeiros.”
*
Semente Tupã
Meus olhos são nascentes.
Cachoeiras correm em minhas veias;
Sou a lágrima que cai, na chuva e no vento.
Sou a água doce do riacho sereno;
Sou a terra que encharca com a cheia dos rios;
Sou a fonte que brota do fundo da terra.
O meu corpo é barro de lagoa;
Meu coração é pedra com limo;
Minha esperança faz curva na tempestade
Que renova no fim do dia, como arco íris.
*
Somos uma só
Não solte a mão mulher.
Segure forte e levante ela junto contigo;
Minha mão estará amarrada na sua,
Como um cordão umbilical desde o princípio.
Suas cicatrizes fazem parte de mim,
Me ensinam e modelam meus passos.
A nossa dor clareia a portão do fim,
Mas não desfaz as lágrimas e o cansaço.
Minha cor e a cor da sua alma,
Minha pele não garante minhas falhas.
Sua voz soluça e acalma,
Erga a cabeça e não prove mais migalhas.
Eu não vou soltar dos seus braços;
Vamos juntas em voz única gritar a tal paz.
O universo conspira e me desfaço;
Mas é na chama da vida que minha alma trás.
Somos canto divino da força que quer,
Vibração de guerra que emana luz.
Minhas mãos não soltam suas mãos mulher,
E meus olhos são todos os nossos corpos nus.
E soltas dançamos ao som da liberdade,
Que carrega nas entranhas o gosto do passado.
Processar meu espirito a sororidade,
E cuspir a saliva do doce que desce amargo.
Juntas somos muro que protege nossas filhas,
Embriagam nossas mentes com mordaças divinas.
Não vamos deixar que tampe nossas trilhas,
E jamais entregar as nossas meninas.
Se hoje eu canto foi porque não me soltaste,
Me agarre forte e estreite esse nó.
Como a Deusa mãe, sem me conhecer me amaste,
E hoje eu te amo e nunca te deixarei só.
agripina maria de souza
Minha indiazinha que orgulho ver que minha filha faz de sua arte o reflexo da beleza da alma, a poesia e com a suavidade de uma onça faz dela o grito de seu povo.
mais ORGULHOSÍSSIMA!