Cinco poemas de Heleine Fernandes
Heleine Fernandes é mulher preta, poeta, professora. Nascida e criada na Rocinha, é doutora em Teoria Literária pela UFRJ, com tese sobre a poesia produzida por poetas negras contemporâneas e o combate ao epistemicídio. Tem poemas publicados no site “Mulheres que escrevem”, na revista Escamandro, na Antologia Cult #1 e na antologia Ato poético, da editora Oficina Rachel. Seu primeiro livro de poemas, Nascente, está previsto para o primeiro semestre de 2020.
***
cantiga
vou cantar
para você
atravessar o escuro
em um travesseiro macio.
as paredes silenciosas
te guardarão o sono tranquilo.
ninguém entrará na sua casa
sem ser convidado
ou sem tirar as botas sujas.
seus pertences ficarão arrumados nas gavetas
e suas roupas no armário
como você as guardou.
o dia não se anunciará
com o som das hélices
que tiram o ar.
*
operação colonial
acordar com o som dos helicópteros
espanta-pássaros.
difícil sentir-se em casa
no próprio corpo
quando sobrevoa
o caveirão voador.
o que quer a operação?
os meus rins?
o meu útero?
o meu coração?
estranha cirurgia
o Estado quer amputar-me
da casa
que levo dentro.
ele quer entrar
sem ser convidado
revirar tudo
e expropriar-me de mim.
onde é aqui
quando a bala canta?
diáspora.
e quando ela silencia?
diáspora
gravada nos meus genes.
os líquidos do corpo tremem como na antiga viagem.
os órgãos
de inteligência de Estado
estudam perfurar
telhados de escola pública
e fronhas perfumadas
com o teu cheiro.
os cães farejadores.
mas ninguém pode invadir
a casa que levo dentro.
contra isso mantenho-me viva
em vida.
contra isso
muitas bocas
assopramos o fogo do que não morre.
*
visita
se você quiser
posso te ajudar a arrumar a casa.
ele foi embora
e não fará falta.
posso te ajudar a doar as roupas
que não servem mais
a tirar o lixo fora.
se você quiser
posso ajudar a abrir mais espaço
esvaziar gavetas
garrafas
colocar plantas no lugar dos móveis
que apodreceram.
bromélias begônias orquídeas.
aquecer a cama.
caso haja espaço
se você quiser
posso.
*
indigesta
enquanto você fazia o seu luto
eu imaginava seu corpo debaixo
das roupas
tão menor que elas
muito vivo e morno
alheio àquelas histórias
todas repetidas dolorosas
que as palavras relembravam e punham
de volta à mesa
como uma comida muito pesada
para ser comida à noite.
*
refeição completa
você veio
e cozinhamos juntos.
esperamos o tempo
de marinar a carne
de amolecerem os grãos
e de apurarem os perfumes.
bebemos
lambemos os dedos
mergulhados no azeite
e aproveitamos o mel e o suco
que se desprenderam
dos nossos corpos nutridos.
ao fim
um café preto
para acordar
do feitiço da nudez.