Cinco poemas de João Pedro Cerdeira
João Pedro Cerdeira nasceu e vive em São Paulo. Atualmente realiza doutorado em Literatura (Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa) na Universidade de São Paulo (USP), onde pesquisa a produção literária lésbica e gay no período da ditadura militar brasileira. É mestre em Literatura pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e professor de língua portuguesa e literatura. Publicou o livro de poesia Transviados (Pautá, 2020).
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por que há poema em mim
tudo é etéreo
passo os dias como o vento, arrasto o tempo,
não há nenhum mistério.
*
por que há amor em mim
tudo é matéria
corpo vivo, sangue quente ateia fogo
pela artéria.
*
Essas duas partes
corpo instável, alma eterna
esse abstrato soma o sólido
num contrato estranho e ávido
– imutável.
*
quando chegardes em casa, amor,
após a labuta dos trabalhos e os dias
aguarda-me – pois te deitarei na cama
e, sem parar, te beijarei os pés cansados.
*
não pelo gesto de submissão subserviente
de quem se humilha e ajoelha para adorar
mas pelo carinho e o cuidado a um igual
a quem não se quer menos que todo o querer bem
*
beijos os pés que sustentam e estruturam
todo teu corpo, o corpo que amo.
roço neles minha barba para te fazer cócegas,
arrancar risos, trazer alívio ao cansaço do cotidiano
*
estes pés – pés macios e pequenos, de solas gentis
mas ao mesmo tempo másculos,
pés que te levam pelo mundo, a toda parte,
e que quando anoitece, cansados e no escuro,
te trazem de volta para mim.
*
sob a quente luz do sol nascem flores
quando querem, sem que jamais decreto
algum obrigue abrir anteriores,
as flores, ao seu próprio projeto
*
mas se tal pensamento é correto
correto também é sobre os amores
pois ainda que se queira ser discreto
o amor, quando ele quer, brota em primores
*
e se precisarmos de um calendário
para aquilo que nunca marcou horário
por medo, protocolo ou por pudor
*
moldamos a língua se necessário
forjamos um novo vocabulário
falamos, sem falar, do nosso amor
*
minhas mãos param de tremer
como que por envergonhadas
quando você as toma nas tuas
[que iriam pensar tuas mãos dessas
mãos morenas que tanto tremem?]
*
sorrio sem mostrar meus dentes
e digo algo que é incompreensível
e que não importa.
*
desenlaçamos as mãos para eu fumar
o cigarro baila entre trêmulos dedos
você fala alguma coisa, algum gracejo
que eu não entendo, que não importa
as palavras todas perderam o lastro
– não há mais o que dizer,
*
tudo foi dito antes, tudo foi dito tanto,
até a exaustão. [parecemos estranhos,
estranhamos tudo a nossa volta.]
*
eu pego de novo na tua mão, trêmulo ainda
ainda sem falas para falar, nos beijamos:
é chegado o momento de vivermos as didascálias.
*
Quatro pernas
Quatro braços
Dois de pé
Dois de paus
*
Duas cabeças
que nem sempre pensam juntas
e apenas um quadril
na duração de um ato de prazer.
*
ser um só, ao mesmo tempo
em que se é dois
unidos por enigma
num sintagma corporal
*
como se os corpos se estendessem,
unidos um ao outro
num entendimento mútuo.