Cinco poemas de Jovina Souza
JOVINA SOUZA nasceu no estado da Bahia e mora atualmente em Salvador, onde graduou-se em letras vernáculas pela UFBA. A poeta tem sido convidada para Feiras literárias e outros eventos de literatura. Sua obra está nas redes sociais, em revistas literárias, várias coletâneas e em quatro livros: Agdá(2012) O caminho das estações(2018) O amor não está(2019) O levante da fênix(2021).
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ROTINA
Reciclo meus dias com o inesperado
do cotidiano, com a pipoca da esquina,
com a luz do sol, com teus beijos e o mar.
Meus dias são feitos de sensações e palavras,
raios da minha consciência
Vivo meus dias do que eu percebo,
do que eu sinto.
Ajuda-me, Carolina Maria de Jesus, Miriam Alves,
Esmeralda Ribeiro e Conceição Evaristo.
Meus espelhos de esperanças, minhas alianças
com o melhor de mim no caminho para as estrelas.
Fico atenta ao que elas dizem e não me perco.
Vou certinho para o alimento ancestre
que me levanta e me oferece os mundos infinitos.
.
Faço-me menina em suas palavras.
Nos seus versos danço, abro meus braços,
faço meus dias leves na calma que luta,
ampliando caminhos, construindo outros olhos
para a liberdade que nos espera
além da parede branca que desencanta,
mas é frágil diante dos passos da capoeira.
Vamos fazer a roda camaradas!
Meia lua de compasso na desunião
levanta o joelho do chão!
Vamos juntos fazer a roda!
Religar os braços e os passos,
com nossas guerreiras e nossos guerreiros
quilombolas.
Vamos! Vamos fazer a roda camaradas!
*
MULHER PRETA
O meu caminhar é de encontros
com seres que odeiam seus traços
herdados da minha face.
Com narcisos brancos e machos
e seus espelhos, trazendo sombras
para minha janela
Sou uma mulher preta nessas rotas
de consciências racistas, liquefeitas
a parir humanidades esdrúxulas,
disfarçadas lanças de mecenas,
ceifando crianças, mulheres e homens.
Minha vida então se faz em crônicas
de muitas lutas e de muitos sonhos.
Vivo a esperança que abraça a luta.
Neste reino de realidades cruas
fico forte é no abraço das pretas irmãs,
de onde sigo para quebrar os espelhos
dos narcisos,
resgatar conforto para o negro feminino
e bálsamo para a escuridão.
*
PREPARANDO O VOO
Não me apraz o silencio.
Interessa-me a palavra funda
no acolhimento dos vivos,
dos que ficam e lutam.
Meus olhos estão atentos nos dias,
nos encontros da vida sem guia,
onde a valentia preta pode anular
a violência que nos impõe o cotidiano
Não me apraz o medo nem a ironia
do clarão cortando o que me liberta.
Desvio dos cortes e protejo meus olhos
da claridade que cega.
O que me seduz é abrir os caminhos
para a noite escura que me acolhe
na sabedoria de Nanã.
É lá que minha alma dorme feliz
e acorda
pássaro das manhãs.
*
AUTO AMOR
Procuro saída para as armadilhas,
não deixo que meu sentir seja corpo
nem seja violado por nenhum Deus.
Sigo a rota do desejo e do fazer
para tecer a realização dos sonhos
e os bálsamos para minha alma
e minha cabeça.
Se encontro enigmas, revelo-os
Abro-me para os prazeres do mundo,
das auroras e das estrelas.
Com eles faço a cama onde me deito.
Caso fique ainda os espinhos da vida,
sou minha própria mãe, acaricio meus pés,
lavo o corpo com alfazema, begericum
e folhas de arruda para o afago das Deusas.
Beijo suas mãos e seus akotás,
resguardo-me no amor dos seus ventres
para me limpar do amargo servido a nós,
mulheres negras.
Busco os saberes e os fios da delicadeza
para compor a coragem que me abastece,
ficar atenta às juras de amor e aos cuidados
malignos dos homens.
Sigo voando largo com a sutileza das virgens
e o bem estar das profanas.
Ao ar livre, finco o esteio da minha casa,
e nada turva o que vivo, pois o saber
mais os sentidos, conduzem meu destino
*
FUGITIVA
Finco os pés no chão e sonho.
Mesmo,
com as balas mirando minhas costas.
Sei do sabiá, já ouvi falar.
O canto por aqui é dos monstros
com seus louvores que odeiam
meus olhos, meu nariz, meu cabelo.
Eles têm orelhas grandes e caídas,
tem as leis, as pistolas, versículos
evangélicos do mar vermelho,
tingidos
com o sangue do meu ventre.
Viro meu leme para outras paisagens
procuro a força das folhas, dos ebórs
para livrar-me do mal das orações
E assim,
pular além do antecipado, do oferecido.
Cortando as ondas dos ventos proféticos
vou para os descampados, fora das linhas,
cercando-me na frente do deus atirador.
Não me seduz o concreto nem o mar
nos evangelhos dos homens,
onde navegam suas declarações de amor.
Sigo no desacato de sempre a esse deserto
de sorrisos e suas doses mortais de absinto.