Cinco poemas de Letícia Novaes
Letícia Novaes nasceu em Descalvado/SP e se mudou para o Rio de Janeiro para estudar Direito na UFRJ. Desenvolve pesquisa sobre Democracia e Autoritarismo. Escreve poemas, contos e crônicas. Ainda não tem livros publicados.
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Não abra os olhos
Minha coragem foi como a de um cego que não vê a sua frente o perigo que lhe enlaça o passo.
Tive coragem de não olhar para trás, e mais coragem ainda de não olhar para frente. Por alguns segundo fui capaz de amar ambos, o passado e o futuro.
Tive em minhas mãos o céu e o inferno, e fui gigantesca.
Soltei o corrimão da vida e, por Deus, a compreensão súbita fez ar em meus pulmões.
Sou a vestal de um dos maiores segredos da vida!
Conto-o agora, especialmente, a ti, e só a ti, porque não dividi-lo faz peso em meus ombros: -Tuas previsões lhe diminuem o mundo…
Não! Não duvides de mim tão prontamente.
Eu vi, sei que vi, porque não dei ao que vi ressignificados.
Perceba, não estou pedindo que se ponha à beira de um abismo, mas que não deixe-se viver um viver domesticado para torna-lo conhecido.
Permita-se à intrepidez de dar a mão a mão amaldiçoada da incerteza.
*
Rosário Aquático
Pra onde nós vamos?
Na verdade, pra onde vai toda essa gente?
Depois de tudo. Depois de tudo que veio e também do que não veio…
Ainda há um brilho. Um brilho se quer, em algum lugar.
Eu sei que há, tem de haver, ou a pura escuridão já teria nos mastigado.
O céu às vezes é neon, eu juro que não é perigoso.
As nuvens primeiro lambem nossas testas e sentem o gosto do suor de dias.
Eu não me mexo, tento ao máximo ficar imóvel.
Um pássaro pousa no meu peito e muitos vem em seguida.
Tantos pássaros que parece uma prece.
Eles tentam comer meus olhos. Eu não os impeço.
Quando acordo e me olho no espelho também penso em comê-los.
Mas se o fizesse nunca mais poderia abrir as janelas.
Jamais! Nenhuma janela sequer.
Porque não as enxergaria.
E são tantas janelas que mais parece uma prece.
Também nunca mais veria o mar, as anêmonas do mar, e as águas vivas!
Só sentiria o salgado, e alguém teria que me confiar que era mesmo o mar.
Por isso espanto os pássaros
Porque quero ver o mar
Quero ver muito do mar
Tanto do mar que parecerá uma prece.
*
A gente já fez revolução
Te escrevo com a boca,
como fazem pintores mutilados.
Desenho, retorcida, essa carta completa.
Cogitei escrevê-la antes,
Só que não encontrava as mãos.
Escrevo é com tamanho esforço,
porque não sou de sonhar.
Se sonhasse, sonharia com você.
Só com isso teria a certeza que te conheci.
Transparece a caligrafia, eu sei, a urgência pelo registo.
É que só você me ajuda a encontrar as mãos.
Não sei o que seria das próximas cartas se não tivesse você me conhecido.
Então, erga os pulsos!
Para que eu possa te encontrar no meio da multidão.
Porque reconheço a força dos seus punhos.
Já lutei ao lado deles, e com isso, não preciso sonhar.
*
Nosso show
O ar parado.
O tilintar das suas chaves.
O ranger da porta.
Os sofás atentos.
O tapete enrolado para faxina.
A faxineira que lava louça cantando,
Suas melodias são inventadas?
Queria ouvi-las também quando sou eu quem lavo a louça.
Não sei cantar,
Ela também não,
Mas canta, canta…
Seu rosto em oi,
Minha boca em êxtase.
As paredes,
Os lençóis,
Almofadas gigantescas.
A janela aberta,
As cortinas fechadas.
Quanta ignorância!
Quem é que fecha as pálpebras para beleza de um amor como o nosso?
*
As Margens
Giro a maçaneta. Empurro a porta. Busco as chaves. Me tranco para fora.
O Térreo no elevador. O portão do prédio ali na minha mão. Seguro para o vizinho.
Agora, o cartão do transporte entre os dedos.
Abro a mochila. Pego a maçã.
Experimento com os dedos, como fazem no supermercado.
Quantos já testaram – com os dedos – essa mesma fruta?
Será que nossas digitais se misturam?
Os dedos dos outros na mão, a fruta apalpada na boca. O gosto do portão do prédio.
Devia ter pego com a pontas dos dedos, tocar o menos possível.
Andar, também, na ponta dos pés. Como se não pudesse tocar o mundo.
Já pensou? Beijar com a ponta da língua, olhar com o rabo do olho, sentar com a pontinha da bunda e quase cair.
Quase cair sempre.
Viver quase caindo.