Cinco poemas de Lia Sena
Lia Sena é escritora, dedica-se, em especial, à poesia, tem livros publicados nesse gênero, arrisca-se em contos e crônicas e acabou de escrever um romance. Graduada em Letras, Integrante do Mulherio das Letras, ganhadora do III Prêmio Sosígnes Costa de Poesia com o livro Na Veia da Palavra, já compôs algumas canções e é a editora adjunta da Revista Ser MulherArte.
***
dentro
bordarei de prímulas os arredores da casa.
inventarei primaveras confusas
saudando o inverno.
esquecerei os corpos sem telhado.
não falarei da pele
que ferem com outros bordados.
bordarei de estrelas o teto.
não chorarei o descampado
que alicerça o abandono.
bordarei com fios dourados
de crepúsculo
os muros que minh’alma invadem.
bordarei as roupas de noiva
com carinho de pérolas
á espera das núpcias.
bordarei o chão
com as nuvens que sobrarem
dos milagres.
peixes, vinhos, deleite
fartarão nossos ventres vazios.
o corpo, bordarei de cheiros
pétalas inundarão o leito.
– não chamarei deus por hoje.
certamente estará ocupado
com tanto frio lá fora.
*
fatos
sobre o riso de ontem
sobra o silêncio
a lágrima turva
o desespero.
sobra uma esperança
recolhida a dedo
entre as dobras dos lençóis de outrora
que agora pousam limpos
[ultra brancos]
à custa da água sanitária
que engole a casa.
sabonetes/detergentes
garantem a limpeza
de mãos e caras.
os sapatos à porta
esperam.
o desinfetante não limpa
nem perfuma
o cheiro de morte lá fora.
*
fechado
contar estrelas.
exercício luxuoso
que não cabe
no âmago desse apartamento
desenhado
pra confinar vertigens
e vontades.
*
líquidas
quanto de correnteza habita os olhos de uma mulher
quando se debulha em lágrimas ao ouvir uma canção antiga
daquelas quando ainda havia uma vitrola em forma de móvel no meio da sala da casa dos seus pais
e os discos eram long plays e compactos em vinil
ou ainda, como aquelas que sua mãe cantava e enchiam seus olhos de lágrimas?
quanto de correnteza habita a boca de uma mulher
quando ela sofregamente beija e lentamente a língua passeia
entre dentes e língua e céu
ou quando lembra o namoradinho da adolescência, pernas bambas, coração aos pulos, enquanto o pai não chega?
quanto de correnteza habita as mãos de uma mulher
quando lentamente lava a louça e pensa em segundos, detalhes de uma vida
ou quando soberana,fricciona o sexo do homem amado, num afago que vira frenético apelo e se derrama quente sobre suas mãos?
quanto de correnteza habita os cabelos de uma mulher
quando levemente, debruça-se sobre a pia, abaixa sob a torneira, a cabeça e deixa que a água vigorosamente escorra, por entre os fios e pensamentos tão emaranhados quanto os cabelos?
quanto de correnteza habita o quadril de uma mulher
que pare naturalmente seus filhos
espera que a bolsa estoure e gotas de sangue sejam expelidas entre as contrações
que trarão, à vida uma nova criança
fruto do seu ventre?
quanto de correnteza habita o corpo de uma mulher
enquanto vagarosamente passeia pela sala e se imagina
nua em pelo
nos braços de quem virá mais tarde
quando lentamente sorverá o vinho
provará a boca
o delírio das carnes e o encontro de almas. [talvez]?
quanto de correnteza habita uma mulher só
que todos pensam, ressequida
e triste
sem nenhum elo com a vida?
quanto de correnteza habita o corpo de uma mulher
que goza?
*
perdido
sombra de tirar da noite
o brilho. morcegos psicodélicos
e um silvo
do trem do pássaro
do vento
que corta a madrugada
e rasga a carne da mulher
do menino
do homem embrutecido
sem lar.
perdida é a tez da alegria.
amarelecida a fome
empata o sono
e turva o olho
como no livro diz
carolina maria
como sentem todas as marias
como sentem seus meninos
seus homens
de olhares perdidos
de frio
de fome
de abandono.
AIDIL ARAÚJO LIMA
PERCO O PASSO, DESCOMPASSO NESSES VERSOS FORTES.
Marcos medeiros
Gostei da iniciativa. Bons poemas, bons textos. MARCOS MEDEIROS.