Cinco poemas de Lilian Cortez
Lilian tem 29 anos, pós-graduada em Mídia, Informação e Cultura (USP) com pesquisa sobre Feminismos Latino-americanos e autora de Instação (Letramento, 2021) e Palavra Furta-cor (Multifoco, 2018). Além da literatura, permeia os mundos da fotografia e do teatro, buscando sempre trazer, ainda que de forma subjetiva, uma perspectiva feminista/política/social – porque é preciso.
***
alguém sempre está pendurado
de cabeça pra baixo,
com as estruturas de fora,
num emaranhado de tecidos
e a perder de vista.
alguém sempre joga a isca
porque na testa do outro
está escrito “presa fácil”,
difícil é fugir da masculinidade frágil
e rasgar a cartilha.
alguém sempre cai na armadilha
porque o sistema é feito pra isso:
forte pro anzol,
impossível pro peixe.
a não ser que se juntem como feixe
para abrir as portas do mundo.
*
às vezes eu penso em me acalmar,
me tornar animal dócil, desses que aceitam ordens
e ficam felizes pela companhia.
ignorar tudo que foi dito, relevar tudo que foi feito
só para não arranjar confusão, nem disritmia.
mas aí aparecem os absurdos:
as facas colocadas como maçanetas,
de propósito, só para alguém se cortar.
como eu vou ignorar?
como eu vou fingir que não é comigo se,
uma hora, a corda pro meu lado
também vai rebentar?
chamam de personalidade forte,
pessoa rebelde, alguém difícil de lidar.
e dentre todos os efeitos colaterais,
só não tenho problemas de consciência,
pois se tem uma coisa que eu vim fazer no mundo
foi questionar.
*
está na hora de fazer
um grande desbalanço.
colocar tudo fora do lugar,
fora de ordem,
fora de alcance.
é vez de bater ponto
numa rua sem saída
e decidir qual muro pular.
eu quero a assimetria
do que não tem encontro:
cada um vai para um lado,
pois não há espaço para a dúvida.
eu quero romper a corda
na qual me equilibrei
e sair voando com o vento
que, um dia, já tentou me derrubar.
*
eu sou meu próprio céu:
espaço abstrato a perder de vista
e tempo concreto a não se perder no vento.
o tempo passa o que na gente fica
como um voo livre num céu rarefeito.
eu sou um universo em expansão
com planetas sentimentais,
satélites sensoriais
e estrelas irracionais,
tentando planejar a próxima mudança de órbita
em torno de mim.
centenas de milhares que habitam meu eu
emergem do mais profundo universo desconhecido
e que já não me interessa: o seu.
com que alma me enxerga,
com que gosto me prova,
com que olhos me lê:
nada disso importa se, na minha galáxia particular,
não entram olhares distorcidos
que não passam pelo exercício diário de tudo rever.
*
sou bicho em fuga.
instinto contra-caça, contra-ordem, contra-controle.
meu sangue é dolorido.
dói e escorre pelas pernas,
enquanto me viro do avesso para não escorrer junto.
entro para dentro em sinal de continência
porque não posso ir embora de mim.
não posso abandonar a vida que se revira num estalo;
não posso sair de onde não há placas para o fim
e nem mesmo portas de entrada.
outro dia se inicia
e cuido para que as tentativas não sejam novamente
desperdiçadas, exauridas, esgotadas.
mais uma vez me condenso para não escorrer e,
por um instante, o mundo me tem nas mãos.
até o próximo instinto desertor rasgar o invisível:
minhas rédeas.