Cinco poemas de Marcelo Reis de Mello
Marcelo Reis de Mello nasceu em Curitiba, 1984. Vive no Rio de Janeiro desde 2009, onde é servidor público. Publicou José mergulha para sempre na piscina azul (Garupa, 2020), Elefantes dentro de um sussurro (Cozinha Experimental, 2017), entre outros.
Os poemas “o salto” e “aéreo” foram publicados no livro José mergulha para sempre na piscina azul (Garupa, 2020). O poema “pulmões humanos” foi publicado no livro Uma pausa na luta, organizado por Manoel Ricardo de Lima (Mórula, 2020). “Deus ex machina” foi publicado em Elefantes dentro de um sussurro (Cozinha Experimental, 2017). O poema “estudos para uma teoria geral do botox” é inédito.
***
o salto
ao italo diblasi
ninguém mais do que você
nestes últimos meses sabe
o tamanho real do que temos
e não temos sido.
uma estranha eletricidade
rampa os ossos
enquanto descemos o morro
ofegando como potros
prestes a aprender a andar
trombando nas coisas
nos cascalhos todos
entre guimbas garrafas
de pessoas de bem
com seus olhares de cima
e veneninhos gourmet.
qual é o herói
que um homem procura num prostíbulo
quando está frágil
(porque fracos somos sempre um pouco)
alguém que no meio do mangue
entre pombas de pernas roídas
e sereias decadentes
recita a linguagem da ave
e do peixe?
se no inchaço dos lábios
ávidos de vida
você guarda algum figo maduro
sustenta também no crânio
(onde antes a aura)
o diminuto escalpo
arrastado no asfalto
e uma cabeça pensa num carro de fuga.
a gente talvez pese a mão às vezes, Italo
ao esmurrar durante tanto tempo
um muro que a mão não alcança
não alcança
e por isso talvez nem elas
nem nós saibamos ao certo
de onde o sangue
desta fronha empapada
pela manhã.
seu gato glabro e desastrado: um salto
sobre a cristaleira
e o prejuízo inevitável das festas de família
os dedos trêmulos
depois de um porre de trinta e seis horas
e palavras
dobradas como uma nota
de dois.
invejarei (quando começar a lembrar
de molhar as plantas)
este desespero prognata
esta urgência
de agarrar – com os dentes
um segundo qualquer
uma fração qualquer do tempo
em que a eternidade
nos olhe nos olhos
como um bebê olha
nos olhos da sua mãe.
Louis Garrel das bocas
da Glória
(a quem recomendei com ingenuidade
precoce um analista)
é favor perdoar a insensatez
do cálculo. hei de aprender
contigo a dançar mais – e jamais
conforme a música
*
aéreo
ao victor heringer
I
é e não é este
o salto
não
na verdade
nunca soubemos
tão bem onde termina
a janela e começa
a paisagem
mas parecia
juro que parecia haver
quando ao chão alguma esperança
de um pouso um pouco mais leve
asas que bastassem
II
o corpo continua
a cair
e a cair
até não
mais cair
no centro
do que já nem
pesa
neste longuíssimo
pesadelo
como se a pena
pudesse ser
e fosse
ao fim de todo azul
o pássaro
III
momentos
em que sons trinados para uma ameaça ultrapassam
a forma
a altitude
o peso
a viscosidade do desastre
o quê
mas
IV
de tudo que há de impronunciável
agora
pior (nem sei)
não poder contar
com o seu próprio
espanto
diante do nosso
ao ver
o que se põe
o que não se põe
num buraco
V
tanta gente aqui o levaria nas costas
o tempo que fosse preciso
mas não é assim
que se salva
uma ave
intacta
VI
48 horas depois
sobre a terra
um salto
ainda
ainda
VII
72 horas depois
e nada
ou quase
um pouco menos
dilacerante
reaprender a andar
sem chão
*
pulmões humanos
ao manoel ricardo de lima
em memória do padre adelir antônio de carli
suspender o instante –
lembrar para dar peso à imagem
do padre alçando-se
ao céu sob uns balões de festa
lembrar nesse instante
a dureza do chão
os mortos sob o chão
lá de cima – abraçando-se ao padre
infantil como qualquer padre
qualquer deus
em seu semi-delírio
um chapéu cônico de aniversário voa voa
(a cena é bonita como uma criança em uma polaroide)
então sentir bater no rosto
a força diagonal do vento
lá: a mais de cinco mil metros
o frio a força humana
a mover infinitas montanhas imaginárias
– nem um milímetro de terra
subir até um ponto dífícil
depois impossível
para pulmões humanos
(até para os pulmões de um santo)
já vai tão alto que o celular sem sinal
indica o ponto máximo da sua enfim celestial solidão
o gps nunca soube usar
pelo que apareceu no jornal
os balões não pararam nunca de subir
na direção da tempestade
– pergunto-me se um padre não deveria ter como salmo esta única intuição
ainda assim é este padre de paranaguá
(incapaz de levar pedras escondidas nos sapatos)
o mais terrestre
mais alegre
mais humano
o mais patético dos padres –
um padre que se lançou aos céus
amarrado para sempre
em mil balões de festa
*
estudos para uma teoria geral do botox
I
um dia notou como o seu rosto se contorcia
como havia perdido o seu corpo
pelo seu jeito novo de sorrir
com os dentes muito duros
lábios um pouco repuxados
(é estranho ver falar o sofrimento
num rosto que amamos)
quem nunca viu
que um rosto às vezes diz deserto
que todos os caminhos levam a um
lugar algum
e que até as sobrancelhas podem ser arquipélagos imaginários
miragens sobre dois lagos
de areia e espelho
não a máscara do deus que vem
que o rosto não chega
a desejar a dissolução
das formas – da boca de
fende seu oráculo
quebrado
rosto transformado em trapo
mineral – pedra plana
cujas cavidades funerárias
foram devidamente recheadas
de terra barroca
ou rococó
então pensa no rosto
que nasce de toda separação
um rosto tão bonito
as formas antigas sepultando-se
aos poucos entre rugas e covas
sumindo por dentro
das mucosas
até a arcada dentária se assentar
entre palavras
um pouco mais macias
enquanto um barro seco
carna a língua
de pequenas fissuras
promessas-ruínas
por onde correm
silêncios antigos
– o dia em que saíram daquele filme sueco
e se atracaram dentro do carro
sem ligar para o policial em ronda
a poucos metros da janela:
toda careta tem a forma de um deus
que morre
o rosto de quem sofre – penso
esculpe no tempo
um coração
sem geometria
II
uma geleca
de consultório
não será jamais
uma pedra
trabalhada
pelo rio
percebe?
se o recheio
do rosto amado
ruínas romanas
e terra barroca
era botox
deixa que siga
seu curso –
as coisas que mais ardem mais
traem a banalidade de tudo
ó bobo ó macho ó mico transcendental
não é por ti que um rosto se torce
é sobretudo contra ti
que esta injeção se lança
– como um bumerangue
a mão em concha
para uma orelha perplexa
dá o toque:
guarda o radinho
lírico limpa a toxina
botulínica
dos cantos da boca
e bota um gelo na testa
rega de vez em quando o cactus
dá o resto de atum pros gatos
depois acha
com bochechas de farofa
(as mãos erguidas – as calças
nas canelas) um jeito de acertar as contas
com o coração.
*
Deus ex machina
Boquinhas fechadas. Pálidas.
Dentro, a escavação. Os escombros.
Porque a boca é o sótão do corpo.
E o que uma boca tem de mítico
tem de ridículo. Não cabe nenhuma boca
dentro de uma manga. Não há caroços
brancos nos dentes. Os dentes são
estalagmites e estalactites. A boca
é sempre cavernosa. Os dentes são morcegos.
A boca é notívaga. A boca parece um rato
com asas. Numa boca cabe
uma porção de terra.
O caixão é pequeno, é um caixão
de anões. Há muitas
bocas numa morte pequena.
Uma boca é uma grande cova
sem mistério. É onde se enterra
o silêncio. É onde se pesca o silêncio.
É onde o mau hálito, é onde
as obturações, é onde os vermes.
Dentro, a escavação. Há muita coisa
lá dentro, mas nenhuma imagem.
As boquinhas fechadas dormem
sem sonhar. Bocejos
são seres fantásticos e contagiosos,
mas o bruxismo gasta os caninos
de madrugada e os cisos doem
quando inflamam.
A boca é uma máquina ruim.