Cinco poemas de Marcio Fernando Campos
Marcio Fernando Campos tem 36 anos e tem por hábito dizer que não é ninguém. É autor dos livretos Ato Falho I & II (poemas), Cada um tem a Amy Winehouse que merece (conto), Entre lobos (poemas) e mais alguns, todos lançados pelo selo Noir Désir Éditions.
***
Ventriloquia Alfarrabista
Tender a demonstrar
através de citações
e hipóteses certa
inteligência nata,
desnecessária ao dia.
Proto-palestras peremptórias,
moucas,
malabaristas,
buscam certificar
com esmero e crivo
o sentido outro de algo
que, fatalmente, não se explica.
(O bom poema é aquele
que com um bom murro no peito
destrava o coração-armadilha)
Pouco se tem falado
sobre o veneno-academia:
preenchendo de lama e dejetos
nossas letras, nossas rimas,
taxidermizando de pseudo-certezas
a nossa euforia
em nome de um pequeno sonho louco,
anotado às quatro da manhã
de uma data agora cinza,
que o tutor aceitou com gracejo
propondo, sequencialmente:
“Transforme sua verdade-sonho em teoria”.
(Verdade aqui sendo compreendida
entre a mentira e o ponto de vista)
Desvio a atenção do discurso ignóbil,
volto os olhos para o livro
que me acompanha no dia.
A epígrafe, na página 29, diz:
“Nada que pretenda ser real merece respeito”
e sinto o murro no tórax…
que alivia.
*
Coisas que não se medem
O tamanho da sombra
projetada na calçada
enquanto damos uma volta
na principal via da cidade,
fechada em dia de folga.
O grau atilado
de uma paixão repentina
por uma nova pessoa
presente
à quem se admira.
A quantidade exata,
em mililitros,
que pode ser extraída
de uma única acerola
(macerada em um mixer,
com caroço e casca).
O peso preciso
de uma lágrima topografada
por Rose-Lynn Fisher
em 54° 48′ 57″ S
e 68° 19′ 04″ O
entre a emoção e a estafa.
A medida, em miligramas,
de um filete de margarina
extraído do pote
para que seja passado no pão
às oito da manhã.
O espaço entre nós enquanto
se afastas tão distraidamente
para a janela,
sem que me ouça chamar pelo teu nome,
e, no átimo seguinte, resolvas pular
para demonstrar com precisão que agora
a distância entre eu e você é nada,
posto que não mais existes.
*
Pensar a palavra “orbe”
como quem observa o mundo pela janela
e diz: “orbe”
mesmo não o enxergando de fato.
Pensar a palavra “fuga”
como quem se retira do palco
deixando em contemplativo
o .
Pensar a palavra “volta”
como quem admira círculos:
bambolês, laranjas, bolas de tênis,
eternos retornos…
até pensar na palavra “palavra”
e não saber por quê.
*
De mim, nem fé se imaginava
percurso de anti-estrada
e a força, o fato, o tempo.
Diante de outras luzes
passos, poços, desalentos,
nem o acaso fez-se alforria.
Deixe o “ ” singrar o dia
propor de outros portos
a brisa que enleia a cotovia.
Lembre pés descalços na ribeira,
antes dia de sol e calma, hoje
Costa rubra, acertos corruptíveis, aduaneiras.
Como chegamos até aqui e o que se espera
da força imaginada dos ciprestes.
Ontem, formas de artes dadas a admirações.
Hoje, mercadorias com taxas pré-estabelecidas.
*
um gole no copo de cerveja
Perguntou-me:
qual é o tipo de relação afetiva
que mantém com tuas lembranças?
Ele dá (título)
Replico:
O que queres dizer com isso?
Eu dou (título)
Questiona-me:
através de tudo o que viveu,
pensa que valeu a pena?
Ele dá (título)
Respondo:
penso que tudo poderia ser evitado,
não faria a mínima diferença.
Ele dá (título), angustiado
Aconselha-me:
a vida é boa, Marcio Fernando.
Eu dou (título), indiferente
Seguiu-se um longo
e apreensivo silêncio
até aqui.