Cinco poemas de Maria Clara Escobar
Maria Clara Escobar é roteirista e realizadora de cinema. Dirigiu e escreveu os filmes Os Dias Com Ele e Desterro – selecionado para a Tiger Competition do Festival de Roterdã, 2020. MEDO, MEDO, MEDO é seu livro de estreia.
***
Uma melancolia a invade antes de ir
As coisas parecem perder sentido no final
Ainda assim é preciso fechar a mala
Abrir a porta e ouvir o golpe atrás
Na dúvida se a porta bateu
Ou um corpo caiu
estatelado morto
no chão
O chãozinho onde era tão bom deitar
nos dias quentes
E o gato vinha
E o pulmão parecia se encher de ar
Agora, preferia que um crocodilo comesse a sua cabeça
Ou que uma manada de zebras tresloucadas
Passasse
Por cima do seu corpo
Uma pararia e daria tchau
Só por deboche
É preciso seguir
No entanto, essa memória
Esse apego insistente
Essa dorzinha pontuda
Uma cabeça pendurada, uma nova fechadura
Três passos pra fora, um ou dois mortos
*
Ela me diz que superou
Finalmente esqueceu o ex
Está casada de novo
Platonicamente
Com um político de esquerda
Português
Sonha com ele todas as noites
O relacionamento vai bem
Ainda não transam, se é isso que quero saber
Mas conversam muito
Um dia até interagiram de verdade
Ela postou no facebook e ele comentou
Com corações
De todas as cores
Ela já pensa nos filhos
Eles nem brigam
E quando brigam tudo bem
Porque ele a faz rir
Essa noite ela sonhou
Que ele beijava mal
E ainda por cima tinha uma filha
Mas isso não a vai abalar
Relações, elas têm altos e baixos
E afinal, se apaixonar
Por essa pessoa inventada
Fez ela esquecer
Aquele crápula
Que ainda escreve pra ela
Mas não habita seus sonhos
*
A mesa apoia o que vai ser escrito
O livro que não se sabe o que diz
A mesa apoia a comida também
Apoia as mãos
De quem não sabe pra quem dá-las
A casa em ruínas
Não apresenta caminho nenhum
É preciso queimá-la
Inclusive a mesa, que apoia
O corpo cairá em queda livre
Mas volta, como num bungee jumping
Esse pesadelo
*
Estamos aqui sentados.
Sentadas.
Estamos aqui sentadas, vamos começar a reunião.
De quem falarão, eles.
Elas.
Sobre a vida.
Não de sentimentos, não de violências.
Falarão?
Oh, nunca se sabe, com eles.
Elas.
São tão imprevisíveis.
Elas.
Eles. Agora, eles.
Falarão do filme que viram ontem, uma sentada atrás da outra
e que só dizia assim:
gosto dela, ela gosta de mim.
ela gosta de mim, gosto dela.
Ou falarão sobre aquele homem suspeito que se aproximou de uma delas ontem,
no ônibus?
Eles são imprevisíveis.
Elas.
Em vez de falar, acabarão por só caminhar?
Nunca se silencie, diz uma delas
de boca fechada.
Não fale demais, diz a outra
de boca aberta.
Elas falarão de algo, isso é certo.
E esperemos que não seja sobre o almoço.
*
Meu tio
Roberto Vinicius
Aposentado da Caixa
Na cidade de Petrópolis
Ia todo mês receber a aposentadoria
Agora não vai mais
Já tem uns meses
Pensaram em contratar um detetive
Particular
Pra saber se ele tá vivo ou se tá morto
Sabiam que pegava o salário todo mês
Agora, não sabem nada
Anoto num papel
Sempre quis ser detetive
Por uns dias
Fazer aqueles cursos do centro de São Paulo
Veste capa, veste óculos,
Segue alguém
O tio Roberto Vinicius
Que eu nem sei se conheço
Deve ser triste, se nem sabem se morreu ou se tá vivo
Sozinho de certeza, triste não sei
Mas alguém procura ele, quer saber
Se tá vivo ou não tá vivo
Se tá ou não tá morto
E se tá, por que parou de receber a aposentadoria
E se não tá, quem fez o enterro?
Pode o tio Roberto Vinicius jazer
Morto em casa?
Saiu do banho, caiu, ninguém notou
Morrer sozinha em casa é um dos meu pavores
Você lá estatelada
E só percebem uma semana depois
Quando você deixa de ir receber a aposentadoria
Ligar mesmo já não liga pra ninguém
Sair na rua, não tem como saber
Petrópolis é longe, é grande
São Paulo também
As cidades podem esconder pessoas
As casas, os mortos