Cinco poemas de Meimei Bastos
Meimei Bastos é escritora, poeta, licenciada em Artes Cênicas, pela Universidade de Brasília, educadora, produtora cultural, atriz e coordenadora do Slam Q’BRADA. Premiada pela Secretaria de Estado e Cultura do Distrito Federal em 2018 com o prêmio de Cultura e Cidadania, na categoria Equidade de Gênero. Como autora e poeta participou de eventos literários como a Festa Literária de Paraty – Flip, Feria Internacional del Libro de Venezuela – FILVEN, Bienal do Livro e da Literatura de Brasília -BBLL e outros. Publicou seu primeiro livro, Um verso e mei, Editora Malê, em 2017. O livro está em diversas escolas públicas do DF e do MS, pelo projeto Mulheres Inspiradoras. Atualmente, a autora coordena no DF o espaço cultural ‘CARACAS, véi’.
***
CÁRCERE
dedico-me ultimamente
a infeliz função de
carcereira.
tornei-me Bangu:
presídio
de segurança máxima
para os meus poemas mais inconformados.
apesar de vacilante
tenho andado na linha,
seguindo rotinas,
contendo rebeliões.
às cinco da manhã
transfiro
os versos
à uma cela
cansada,
mal dormida.
se ali tentam fugir
advirto-os
do horário.
às seis e meia,
na mira de cinquenta e três corpos amontoados
na estrutura metálica
e fria apaziguo sua revolta lembrando-os
das dívidas.
às sete e meia: o ponto.
não há reboliço,
estão todos tecnicamente
contidos.
Control C
Control V.
se algum mais ousado
se manifesta,
delete.
meio dia,
o Sol em Zênite.
enfileirados
os versos tostam a moleira
e descontentes
berram:
liberta-nos!
silencio-os,
considerando
o 13º.
quando trazem ideais
de sonho:
solitária.
em celas tão escuras
quanto os rostos cansados
no pau de arara.
às dezoito horas,
na volta,
prendo um e outro
mais agitado,
no punho daquela
senhora negra.
o céu de nuvens craqueladas
reflete o vermelho da sua revolta contida.
da soalheira das ventas infladas: o mormaço.
esta hora do dia é a de maior periculosidade.
do contrário de vencidos,
eles.
no lugar de quem se entrega,
eu.
assisto passiva minha redenção.
cativa, daquilo que
em mim reprimo.
estou refém,
de um subverso
expondo-me
a covardia.
*
AOS DE CORAGEM
o contorno de giz
do corpo sem vida
estendido no chão.
aquele corpo
também é
meu.
é meu o ferro no sangue
que se funde em grade.
anêmica,
quase
meio
sem vida,
perambulo
pelas vielas,
entre esgotos
e escombros.
minha derme
berra tua sede,
sente teus gritos,
enxerga tua dor,
enquanto enxugo
tuas lágrimas.
sua gente
clama por mim.
eu os desejo.
quero gerar teus filhos,
frutos,
e flores.
não demoro e atendo ao teu chamado.
virei e em seus lares me receberão.
feito as mães
me alimentarão
com o próprio sangue
e me darão um nome.
nos seus risos e punhos
farei morada
e quando do casulo das lutas florescer e partir as correntes que te aprisionam,
dançaremos juntos os sonhos das primaveras.
seus olhos nos meus.
um horizonte.
serei somente tua
e do teu povo
e não mais me apartarei de ti.
*
ACUDA
peço que não me consumam. isso é só imagem. palavra escrita. nada disso sou eu. nada disso me pertence. sou frágil. por vezes, mais do que gostaria, infeliz. me sinto solitária. sinto saudades dos amigos. choro os amores findados. sorrio em fotos. retrato. uso, errado, vírgulas. meu nome está sujo. troco sílabas. cobro atenção. rememoro cheiros, especialmente o de minha vó. me acho patética e previsível e poucas vezes gosto do que produzo. não sei o que dizer. coleciono cartas, bilhetes, trecos, papel de balinha. choro de alegria quando algo bonito me encontra. performo. me entrego facilmente, me envergonho disso. aprecio o silêncio, minha companhia. me arrependo. impulsiva. escrevo menos do que gostaria. peido. sinto ódio e gosto. sou falha. injustiças não passam por mim ilesas. monogâmica. os porquês me confundem. descanso pouco. sinto ciúme. escapamento de moto me dá saudade profunda. guardo mágoas. adio mais que deveria. sou de estrada. tenho dormido mal. me embriago, gosto muito. complexada. tamborete e acuda são as palavras mais bonitas do meu vocabulário. desaponto. retraio os dedos dos pés no orgasmo. tremo. finjo. se meu coração fosse boca, devoraria o mundo. beijo no cangote me arrepia. bobeiras roubam meu riso facilmente. admiro a inocência. mulheres me atraem. traem. gosto de palavrões. troco f por v, às fezes. cheiro suvacos, gosto de cheiro de gente e de cocô de cachorro que come ração, retorno à infância. não sou produto. visualizo e não respondo. sou imensamente grata à vida. gente de carne osso e excremento todos. atraso. gostaria de mudar o mundo. me alegro fico triste e sinto raiva. produzo leite. tenho estrias, marcas, traumas. não conto. não sei conversar pertinho, sinto vergonha. poupar? nem dinheiro, nem eu. escrevo no celular. quando nervosa dano a rir. as vidas são meu deus. posso ser cruel, já fui. admito. não máquina. descumpro. desobedeço. sangro. referência de nada. não me vendo. repito histórias. algoritmos. emoticons não sentem, nem fazem sentir. boletos. moedas não pagam. signos. e-mails. acredite em mim, nada disso é real. só nós.
*
QUINTAL
quando eu era pequena e só sentia bom quintal, ruim briga, e brincava de tatu bolinha comendo bananinha de trevo de quatro folhas, azedinha, até a Lua aparecer e meu paraíso virar céu inteiro, nesse tempo, não sabia que o lugar onde eu vivia tinha nome, causa e classe.
era só quando saía, várias distâncias em horas de baú, que percebia, na rua asfaltada, casas rebocadas, gente vestindo roupa de sair em casa que o canto onde minha casa pousava era diferente.
minha mãe dando faxina, minha mão coçando pra malinar. meu olho desacostumado com tanta parede pintada, água encanada, com um quarto só de livro, outro só de brinquedo. puxa! eu não entendia: por que ali tinha e lá em casa não?
hoje eu sei, e ainda não aceito.
alegria quando tomava o Danone que a dona dava e dizia: que menina inteligente! cuidado pra não se perder! ‘pessoa de bem’ fazendo sua parte, cumprindo sua cota de caridade.
dizia isso porque não sabia que eu já era graduada na vida. daquele tamaninho eu já cuidava dos meus irmãos e sobrinho, já tinha ouvido mais de várias vezes no dia tiro, já tinha vizinho finado de bala. lá antes de nós nascer já tinha perdido um bocado de liberdade e direitos. ela dizia pra eu não me perder. o quê, dona? ainda tem mais pra perder? hoje eu sei. se nós não cuidar tem. eles sempre dão um jeito de tirar mais onde não tem.
era minha mãe acabar de passar as roupas e a gente ia embora. eu ficava contando estrada. logo depois do balão que tinha um periquito eu sabia que tava perto. na entrada, morava uma santa, que o povo chamava de Maria, Santa Maria.
quando chegava em casa, via meus irmãos, o Brendinho. dividia os biscoitos que minha mãe tinha me dado pra comer no caminho e corria pro quintal pra ver o céu. pedia pra maínha temperar a água pra eu banhar, ali mesmo, na bacia, no terreiro.
aí, eu imaginava que o teto da minha casa era todo de estrelinhas…
e era.
*
COCHONILHA
me recorda a estória
de uma pessoa que andava triste, tão triste,
mais triste que alguém que força sorriso em retrato ou que engole choro;
mais triste até mesmo que alguém que atravessa as tardes deitada mirando
o quadro de um amor perdido.
o pranto sempre chega acompanhado.
choro trazido pela alegria, vez pela raiva, dor, decepção. choro de partida. chegada.
nunca sozinho. desacompanhado.
o choro tem mais companhia que eu em um grupo de Whatsapp com 350 pessoas numa manhã de segunda-feira.
bom dia! nenhum abraço.
riso e choro partem do mesmo princípio:
quando escorre é o momento exato que entrega ao mundo o sentir. –
eu olhava a pessoa.
era como se nada de feliz e bonito atravessasse seus olhos,
nem vulto de coisa boa, parecia.
nem fantasma de risada. nada.
como pode a alegria ser triste assim? pensava.
o que passa?!
“não sinto nada.
não é culpa sua. desculpa.
foi o tempo.”
dedicada observava sua tristeza
contida e calma.
suspeitava. nunca tenho certeza
de coisa alguma.
não arriscava definir o que era.
daí, dum jeito ressabiado, baixo,
uma vez, espremeu:
corri as terras por séculos maltratadas,
abrindo com os dedos a passagem pras sementes do futuro. cobri e reguei com meu suor a terra, ergui o teto que a sombreava e forrei sua cama antes mesmo do que me valia; entregando-me sempre à abertura de novos campos e semeaduras.
me despedi antes mesmo de chegar
com promessas de retorno e colheita.
via brotar frondosa e verde.
a esperança tomava as planícies.
confiei os cuidados do roçado aos que diziam que nelas ergueriam trincheiras.
‘cochonilhos’! esqueci-me que a confiança é traiçoeira e exige um olho sempre aberto.
acreditei, construí e com pouco destruíram, sem esforços, apenas golpes, aliando-se aos inimigos. a plantação do futuro foi tomada por soja.
sentir tristeza por tudo isso é o menos que me resta.
não tem alegria que permaneça.
compreendi.
parece que a mesma tristeza repousou em mim.
(Foto na home por Amanda Antunes).
MICHEL YAKINI
Sempre bom ler você meimei, me tira do lugar, me leva do lodo a leveza, rasteira sem levar tombo, seus versos pegam a gente no colo antes de cair. agradeço!
Regina Dalcastagnè
Uma alegria encontrar seus poemas por aqui, Meimei.
Parabéns a toda a equipe por essa revista linda.