Cinco poemas de Pedro Mohallem
Pedro Mohallem, 25, é poeta e tradutor, bacharel em Letras e mestrando em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo. Autor de Véspera; Debris (Patuá, 2019), semifinalista do prêmio Oceanos. Traduziu com Leonardo Antunes e Bruno Palavro uma antologia poética de Lorde Byron, no prelo pela editora Zouk. Para o Mestrado, também antologiza o poeta vitoriano Alfred Tennyson (1809-1892).
***
Olaria
Em precisão de metáfora,
visitar uma olaria,
ofício que se debruça
nas concordâncias da argila;
ofício, sim, de destreza,
mas sobretudo de fibra,
de espalmar a massa bruta
como quem a amolaria.
*
Lubrificar o motor
que a matéria desfibrila
dando sentido ao seu eixo,
dorsal de vento, cacimba;
e como quem se emudeça
no assombro da coisa mínima,
ver a engrenagem da terra
em florescência centrípeta.
*
Mas no ponto de intumescer-se
afim aos ciclones e aos tigres,
às espirais da natureza
que petrificam a retina,
talhar o bronze latente
das divindades possíveis
com a perícia dos dedos
que a pedra do tempo afia.
*
Cerce trespassar o nylon
a combustão circunscrita
entre o torno e o corolário
e a novo sono induzi-la;
e porque enfim se preserve
a carnadura do giro,
na noite muda do forno
selar a roda do dia.
*
E a despeito da incumbência:
telha, cumbuca ou manilha,
entender que de processo
é que se faz a olaria,
nem tem fim esse mister
que tampouco principia
— e que da morna cerâmica
à massa bruta e sanguínea
a argila é mero pretexto
para outra, oculta oficina.
*
Ecdise
Pétalas sobre um galho úmido
e negro: um farfalhar,
e nada sobra, salvo um duro
desejo de durar.
*
Rompantes, raiam as cigarras
pelos troncos: a fibra
sedosa do ocaso, num rasgo,
dá que outra toada vibre,
*
outra: não o irrequieto estrídulo
da seiva subterrânea
aberta ao mundo; mais acídula,
oca e sólida — crânio
*
que à terra jamais se resigna —
outra eclode, mais muda
cantiga, presa, de resina,
ao pife que a modula.
*
Há muita música, excelente
voz vibrando escondida
nesse oco instrumento (por entre
serragens de sentido
*
e raspas mais de quintessência
que porventura fiquem
passada a ecdise, no silêncio
eloquente do líquen),
*
e acaso irrompam as cigarras
invisíveis, que tingem
a fibra sedosa do ocaso
de cobre, teso timbre,
*
alheias, quase troncos, não
sucumbirão ao próprio
eco e rebento, estas que são
matriz e fruto peco.
*
Vida, memória, flor num muro
fendido: ser o estar.
Nada mais resta, salvo o duro
desejo de durar.
*
Moenda
A brasa de teus pés em descaminho,
o chão lavrado a golpes germinais,
o arranque dos motins e dos metais
e as mãos fabris, febris, com que, sozinho,
engrenaste o motor das capitais;
na utopia do verbo — novo ninho
a embalar os errantes teus ideais —,
o trigo que plantaste fez-se moinho,
e fez-se mosto-flor teu sóbrio vinho,
e teu açúcar, sol de canaviais.
O homem além do pai — também assim
o verbo além da voz diz muito mais —
e além do filho, em nós crescendo. Mas
se a memória é esse engenho em desalinho,
invisíveis remendos, vendavais,
de ti nada dirão palavras tais.
É no silêncio teu que te adivinho:
seiva na carne de profundo espinho,
sombra cingindo azuis dominicais.
*
Epílogo
Pensávamos que amar fosse a razão
do amor: luz que roçasse a incorpórea
face dos dias, áspera canção
de extintas línguas na alma da memória;
*
e, qual vidro fendido que se inflame
na sanguínea visão crepuscular,
mostrou-se amor incandescente lâmina
sobre a carne translúcida do amar.
*
Pensávamos que a morte fosse apenas
um calar-se maior que todo ser,
e ela gritou nas coisas mais pequenas,
*
tão pequenas, porém, que mal ouvíamos:
mal sabíamos dela, e o que sabíamos
pensávamos, pensávamos saber.
*
Augúrio da possível manhã
Uma nova palavra
germina entre os escombros,
e sem que se vislumbre
seu destino de verbo,
um murmúrio montante,
caule tenaz, arguto,
triunfa sobre a estática
daninha do discurso
como uma espera rouca.
*
Um pássaro de sangue
aurora o céu da boca.
*
A mudez pavimenta
o solo; todavia,
embrião de ruínas,
é nela que se lavra
a tal palavra-muda,
e é justamente dela
que reclama seu signo
antissonante, alheio
à melífera fanfarra
da língua que se amouca.
*
Um pássaro de sangue
aurora o céu da boca.
*
Convém gestá-la, embora
tardia às tantas vozes
há tanto soterradas,
e embora as débeis fibras
que restem, por receio,
custem a articular
seu máximo esplendor,
e embora, muito embora
a noite seja muita
para alvorada pouca.
*
Um pássaro de sangue
aurora o céu da boca.