Cinco poemas de Vicente Tchalian
Vicente Tchalian é doutorando em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso e mestre pelo mesmo programa. Homem Trans paulistano, radicado em Cuiabá, foi o primeiro a cursar pós-graduação na UFMT. O foco de suas pesquisas perpassa os estudos de gênero e transfeministas. Trabalha atualmente com histórias de vida e construção de masculinidades.
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Como o cerrado me fecho, me encerro em mim.
Como o cerrado me cerro, me parto, me mato tentando existir.
Como o cerrado, de espinhos me cerco, afasto o afeto, não deixo ele vir.
Como o cerrado, autocombustão, fogo, cinzas, reconstrução.
Renasci da minha própria desconstrução.
Novamente, a cada estação, vejo nascer em verde-folha uma nova pulsão,
de vida, de resistência, de TRANSformação.
Como o cerrado me cativa, acalenta, acolhe meu coração.
Saí da selva de pedras e me perdi no coração, no meu, no seu,
no coração do país.
A cada recomeço, com sua crua e dura beleza,
me ensinando a ser feliz.
*
A nós foi negado o direito de ancestralidade.
Foi negada história, família e identidade.
O direito à genealogia, de saber de onde eu vinha,
quantos antes de mim vieram e quantos ainda chegarão.
De mim foi tirada até mesmo a possibilidade
de compreender que na realidade, mesmo diante tamanha crueldade,
arrancar assim teu chão.
Meu corpo é político e dessa história que hoje habito, vocês
nunca me apagarão.
*
Hiato
Falta, brecha, lacuna
O que tem de vazio
De vácuo, de nada.
Onde vias falha fiz morada.
Me constitui assim mesmo,
sem nada.
Pois que brecha ou falta
são possibilidades de criação.
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O corpo fala, mesmo que calado, surrado, sufocado.
O corpo não fala em vão.
Seja por falta de espaço, abrigo ou afeto, eu brigo com o mundo.
O corpo abortado não é um feto, nascituro; é corpo abjeto.
Minha ancestralidade vem de substância muito mais espessa que o sangue.
Vem da materialidade da resistência, que elege meu corpo, plataforma de
TRANScendência.
Se minha existência se soma ao teu desejo e coloca em colapso todo o seu CIStema,
é porque não sou eu, mas ele o real problema.
Ouço vozes tentarem subjetivar, subjetivar, extinguir minha carne.
Minha vida em construção arranca teu chão e te explica, ao vivo, o que é TRANSgressão.
Por isso digo e repito, tua existência morna não suporta meu ser em ebulição.
*
Heart failure
Apesar dos vários infartos, é impossível prever com antecedência um novo episódio. Há indícios, óbvio, evidências. Entretanto, o momento exato nos é desconhecido e, cá entre nós, melhor que assim o seja. Imagine saber exatamente o momento em que o coração falhará. Que não mais suportará a pressão de bater ritmado dentro de um compasso descabido, sem sentido, em vão. De que adianta um coração, se o sangue passa e nunca fica. O líquido quente entra, irriga o órgão vazio, preenche-o de cor e sai, dando lugar a um novo vazio a ser preenchido por um outro sangue, que, ainda sendo o que é, não é o mesmo que outrora irrigou todas as cavidades. Se pudesse escolher de qual órgão provenientes todas minhas sensações seriam, com o estômago comeria o mundo em seus mais diversos sabores. Com o pulmão inalaria teu aroma doce levemente amadeirado que somado ao seu perfume cítrico faz primavera em meu peito. Ainda que a língua escolhesse, cada curva do teu corpo por ela eu te conhecesse não seria em vão minha existência desorganizada. Mas logo o coração, que me permite apenas sentir os amores, afetos e dores sem jamais materializar tais elementos. Não há substância para consumir o amor em cápsulas na tua ausência. Sofro assim os calafrios e tremores da abstinência que sinto cada vez que um novo sangue entra, deixando o vazio da primeira paixão, alegre, doce e efêmera.
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