Cinco poemas e uma leitura de Camila do Valle
Camila do Valle é poeta e pesquisadora. Publicou Mecânica da distração: os aprisântempos (RJ, poemas, 2005), Perlas chinas (Edição Eloisa Cartonera, Bienal de Arte de São Paulo, contos, 2006), Rockland, Minas Geraes (publicado bilíngüe pela Editorial Eloisa Cartonera, em Buenos Aires, em dezembro de 2017, seus poemas foram traduzidos por María Gomez, Washington Cucurto e Marina Mariasch) e Penélope terminou o bordado (Lisboa, 2018). Coordenou festivais e antologias de poesia escrita no Brasil em países do exterior, tais como Entre cielo y suelo – antologia de Armando Freitas Filho, junto à tradutora Teresa Arijón, publicada na Argentina. Foi coordenadora e curadora da mostra de Artes Visuais “Ouro sentimental” sobre o diálogo entre artes visuais e literatura na Argentina (Museu de Arte Contemporânea de Niterói, MAC, 2007). Realizou as performances Muro Tupi (com o artista Leo Battistelli) e Natureza Viva (com as artistas Lucia Vignoli e Nena Balthar) no MAC em 2011 e 2017, respectivamente. É pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, junto ao qual organizou as publicações: Nice Guerreira: mulher, quilombola e extrativista da floresta (2016); Caboverdeanos en la Argentina – Crónicas de una identidad (2011, mapa e publicação); Cartografia Social dos Afrorreligiosos de Belém do Pará (mapa e livro, IPHAN, 2012). Professora de Literatura Portuguesa, Africanas e da Amazônia na UFRRJ. (A pedido da autora, minibiografia compilada a partir daquela versão presente na Theodorazine., editada pela poeta Virna Teixeira)
O primeiro, o quarto e o quinto poemas são inéditos. O segundo e o terceiro integram o livro Rockland, Minas Geraes. A leitura do primeiro poema foi realizada pela própria autora.
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Ontem / depois de muitos dias sem conseguir dormir / (mas isso não importa: / ainda consigo respirar)/, li a história do menino Miguel./ Zeitgeist do país-pesadelo / Nome de arcanjo, Ágatha, João Pedro, Martinho / e tantas e tontos e quantas e outros! / Nossas possibilidades de futuro / sendo assassinadas./ Estamos confinades nesse des-país / que faz, do presente, sua ruína / Saber quilombola:/ na luta por cada uma de nossas ruínas,/ ainda poderemos levantar / uma casa./ Still I rise.
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Sob efeito etnográfico
Não, isto não é uma autobiografia
Nem nenhum diário remanescente de uma grande paixão
São notas de campo tomando o corpo
como território
e os sentimentos como vozes tradicionais
no momento mesmo do acontecimento.
Tenta-se dar conta
e dar-se conta
dos avanços e recuos de um corpo sobre outro corpo
Paralelos simultâneos
Estes textos são como pop-ups que se abrem
como observação atenta aos efeitos causados no meu corpo pela presença ou lembrança de determinado outro corpo.
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Ao arrepio da lei
A pedra
E o que ela encerra.
Impávida. Um colosso. Sem alteração.
Quisera eu ter essa reação mineral ante
os torturadores
nos plantões tão familiares.
E lá vem a máquina, caminhando.
Ao arrepio da pedra,
Levam, arrastado, aquele homem.
Exangue, aquela mulher.
Naquela estrada pedregosa que termina, pontiaguda, num fim qualquer.
Indeterminado,
sem palavra que nos salve de nossa condição.
*
Dizem: cabeça, coração
Não como se fossem partes diferentes de um mesmo corpo
Mas como se fossem
Duas entidades às quais o mesmo corpo, um quase nada,
Precisa prestar tributo
Dizem: cabeça, coração
Como se fossem dois seres que habitam o mesmo corpo,
um quase nada,
habitado por duas vontades, dois pensamentos,
nem sempre coincidentes.
Digo de mim para comigo:
Que sorte!
Ao menos, quando um se sentir só,
poderá contar com o outro
que habita o mesmo corpo
e chamar:
Cabeça! Coração!
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Carta escrita com o corpo em campo
Desde Neruda,
para Vega – estrela mais brilhante, constelação da Lira
(Torcendo para que a mineração e o garimpo ilegal não cheguem a escavar os espaços celestes).
Preciso
Uma matéria para apoiar o pensamento
Papel, corpo, tinta, parede
O bordado numa saia
Qualquer coisa que sirva de suporte para essa vida.
Cruzo as pernas para algumas palavras,
abro para todo o amor que vive no pensamento.
Mexo e me remexo entre o ouro
em pó-pura-poesia da América Latina
a entrar pela janela
e a cobrir de dourado-sol todos os móveis.
Os corpos dourados da América Latina:
suporte para o pensamento, matéria de apoio.
O mundo sobre os ombros cor de cobre.
O mundo cobre os ombros.
Cobre?
O cristal líquido dos meus olhos umedece
a poeiria:
ouro-em-pó do chão, do corpo, da casa.
Alagam-se todas as fendas / Corte abrupto /
Desabam barragens / Sujeito indeterminado, ação sem sujeito?
…
Choram os mortos, escrevem os vivos?
Pode-se dividir o mundo entre um sujeito e a biografia de um objeto?
Um anel de noivado, por exemplo: aliança ou ameaça?
Enquanto isso, formam-se e deformam-se rios neste chão.
Entre o céu e o solo,
princípios de arqueoastronomia,
marcados nas pedras angulares de nossa reprodução,
mostram:
tudo tem que ver com tudo.
Em um mesmo território, desde os rios voadores.
– Em que mar deságua tanto ouro, meu cristal?
– E de quem, então:
o domínio dos mares? Os minérios de todos os ferros? Essa manilha? Esse libambo?
América dita Latina (e mal-dita América!
No mesmo sinal de dominação em que se nomeia
a grega Amazônia – sagrada casa de farinha que nos alimenta com seus mundos a mais),
em pó retornas aos meus olhos e sobre o papel e sobre o corpo
e sobre a casa, que fica regada de pranto.
Entornamo-nos uma na outra.
Meu-teu coração é a tua-minha casa
Resplandecendo.
Cor de cobre, ouro e cristal.
Quiçá entre o açúcar e a ameaça.
Puxuri. Caxiri. Dabucuri. Wapichana. Macuxi. Nisun. Damurida. Haux haux.
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(Fotografia de Lucia Bertazzo [detalhe em p&b da versão original colorida]. Lisboa, 2019)