O necessário rito do retorno – Por Caio Augusto Leite
Na coluna mensal “As armas secretas” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Caio Augusto Leite escreve sobre livros, CDs, peças, filmes e outras obras criadas por artistas contemporâneas e/ou contemporâneos. A palavra de ordem é: ‘hoje’. O título da coluna é uma homenagem ao grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e a seu livro Las armas secretas (1959). A coluna irá ao ar sempre na primeira sexta-feira do mês.
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (Scortecci, 2013) e A repetição dos pães (7 Letras, 2017), além do livro de contos ainda no prelo Terra trêmula (Caiaponte edições).
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O necessário rito do retorno
“Posso escrever poemas? Por uma espécie de contágio?”, pergunta Sylvia Plath, e é com essa epígrafe que Laura Erber abre o livro A retornada (Relicário, 2017). Quanto à primeira pergunta, a própria autora nos responde: aí está o livro de poemas – recebendo permissão ou não, os poemas existem. Por contágio? Também o livro nos responde, ao receber a primeira das três seções o título de “Espécies de contágio” – as outras duas são “O céu de Vesterbro” e “A retornada” –, confirma-se que não só pode-se escrever por contágio, como há diferentes maneiras de fazê-lo.
Para olhar com mais detalhes, dividirei esse texto em quatro partes, uma para cada seção do livro e uma para considerações finais.
I
Antes de mais nada, é preciso considerar em um livro de uma poeta que é também artista visual (o que é o caso aqui) não apenas as palavras, mas também o modo como elas são grafadas na página. Cada seção do livro é aberta por duas páginas pretas com as palavras em branco e com uma linha que se prolonga em direções diferentes em cada seção, o que produz significados distintos.
Na primeira seção, “Espécies de contágio” a letra “I” da palavra contágio está alongada verticalmente para baixo, formando uma linha que atinge o subsolo do título, ou seja, desde aí temos a ideia de uma base, um suporte, algo que está oculto, mas faz parte da composição profunda do poema – nas palavras de Erber: contágio.
Nesta seção, os poemas que são abertos por epígrafes modulam as palavras ali escritas, ou seja, se contagiam por uma ideia e a partir dela criam algo novo – que não é apenas a pura repetição, mas também não é a fuga total do “mote”. Há algo nesse meio-termo entre o grito da epígrafe e o eco da poeta, é nesse interessante intervalo que o poema se faz.
Para se contagiar é preciso entrar em contato. Uma vez que “as imagens a princípio não são de ninguém”, o olhar é que dirá se aquilo contagia ou não, se algo ali arde no corpo, se impele o corpo a querer dizer, numa relação simbiótica como a que “o lobo estabelece com o trenó” – quem leva quem? Quem veio antes, a epígrafe ou o poema? Por que justamente essas epígrafes e não outras, por que esses poemas e não outros? Perguntas que não se respondem e nem precisa: texto e epígrafe se contagiam mutuamente agora.
II
Em “O céu de Vesterbro”, a ponta da letra “V” segue até o final da página, levando o olhar em direção ao alto. Como que buscando algo que podemos ver, mas não podemos mais tocar, algo que – assim como nuvens no céu – mudam de forma a cada vez que olhamos: as lembranças.
Os poemas dessa seção são como fotografias de instantes passados, recordações não do que foram, mas de como a memória as retiveram. Porém um poema não é uma fotografia de fato, pois, como diz Barthes em A câmera clara, toda fotografia é um “isso foi” e o poema – feito com palavras – seria mais um “isso parece ter sido assim”.
A memória da visão transposta para um poema acaba por excluir detalhes e dar ênfase a outros. Os poemas dessa seção seriam mais como a interpretação de uma fotografia, no caso a fotografia da memória. Se, ainda levando em conta o texto de Barthes, toda fotografia se apresenta total, a fala a respeito dela, por outro lado, é algo que apenas o sujeito que enuncia possui: as cenas tornadas poemas só podem ser esses poemas a partir da linguagem e da memória desse sujeito. Embora possam ser partilhadas, e os poemas dedicados deixam essa pista de uma memória comum, as lembranças tornadas poemas são únicas, em verdade deixaram de ser lembranças, pois já foram alteradas pelo tempo e pelo ato de elaboração do texto (“nada é comparado/ a nada” é dito no poema “Pequena história da fotografia”), ou seja, por mais que um poema surja a partir de um fato vivido, ele já não é mais aquele fato – em contraposição, uma fotografia permanece mostrando o que “isso foi”, a menos que ela se estrague ou se perca.
III
Em “A retornada”, última parte do livro, temos no título uma linha horizontal de ponta a ponta, como a linha de morte exibida nos aparelhos de um hospital quando os sinais vitais cessam. E isso faz sentido, pois nessa seção há o mergulho na quase morte de uma mulher. Como consequência desse trauma, também a forma do poema se altera. Temos aqui blocos de poemas (como blocos de respiração) em que as frases são ditas sem uma pausa muito aparente, como se cada poema fosse dito num só golpe de ar, pois há a urgência do corpo que pressente o próprio fim, apesar de ter ainda o que dizer.
Nesse local “onda as coisas não são nomeadas” acompanhamos a agonia diante da falência do corpo e da própria linguagem, instrumento desnecessário agora que tudo se esvazia. Embora haja a vontade, ainda que trôpega, de continuar a falar (“última tentação da matéria neste mundo”), pois mesmo no ser humano mais próximo do fim essa necessidade parece não cessar, o que talvez indique que antes de deixarmos de sermos sujeitos, tenhamos antes que deixar também de sermos linguagem – enquanto se fala, se vive.
Apesar da morte que circunda, retornar; e retornar é também voltar ao campo da linguagem (“diga o seu retorno diga o seu nome”). Vida e palavra se coadunam numa necessidade primária (no começo era o Verbo), mesmo que haja o medo/dúvida diante do poder da linguagem: falar da morte é atraí-la? (“ao tentar escrevê-la compactuo com ela?”) ou antes falar da morte, pelo gesto de falar simplesmente, é aliar-se mais uma vez à vida? Diante de tal situação não há como responder (“é só uma queda dentro da queda das perguntas”). O que se sabe é que se retornou, ao fim de tudo a linha indicando morte era a linha da máquina sendo desconectada do corpo, pois já não é mais necessária (“alguém abriu todas as portas desligou todas as máquinas”). Por fim, para garantir que há ainda vida, perguntar à retornada: “você sabe onde está agora?”. E a resposta qual seja não importa, pois entender a pergunta, saber ainda compartilhar da linguagem, acaba por responder – mesmo que não se saiba onde está, sabe-se que está viva.
IV
Apesar de diferentes, as três seções possuem algo em comum: o retorno. Temos o retorno das coisas lidas, o retorno de textos escritos há muito tempo e que ganham novas interpretações ao serem gatilho para a escrita de novos textos, como ocorre na primeira seção. Há o retorno do olhar ao passado, em memórias que buscam ser recuperadas através da escrita, apesar de nunca ser de fato a memória em si, mas sim uma outra coisa, que é o poema, assim é a segunda seção. E, por fim, temos o retorno do próprio sujeito das fronteiras da morte, ali onde palavra alguma toca ou faz sentido, a retornada da terceira seção.
Há algo de ambíguo em todo retorno, pois apesar de estarmos ali diante dos textos lidos, das memórias vividas ou até mesmo diante de nós mesmos, sentimos que aquilo que retorna acaba por deixar que surja o que antes se ocultava. Já não é mais o texto, a memória e o sujeito de antes; como em toda jornada, o sentido da volta é assinalado por alguma modificação que a justifique. Eu, por exemplo, reli o livro de Laura e este retorno se mostrou mais produtivo do que a primeira visita: quem mudou, o livro ou eu? O que sei é que, muitas vezes, é preciso se permitir o retorno e com ele, quem sabe, (re)conhecer aquilo que antes ainda não podíamos.