Coluna “Sonora” (26.01.20)
Na coluna mensal “Sonora” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Aline Wendpap escreve sobre cinema e audiovisual, dedicando-se principalmente a tessitura de textos críticos, com ênfase na produção mato-grossense, nacional ou ainda latino-americana. O título da coluna visa brincar com a palavra, que tanto é ruído, quanto pode ser uma conversa ou um som bacana. Não deixa de ser uma homenagem ao som, característica vigorosa do cinema, além de se parecer foneticamente com Serena, nome de sua bebê, que ainda vai nascer. A coluna irá ao ar sempre no último domingo do mês.
Aline Wendpap é cuiabana “de tchapa e cruz”, nascida em 1983. Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas (2008, EdUFMT).
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O Ritornelo, ou quando o fim pode se tornar um novo começo
Seis dias depois do fim (João Pedro Régis & Jorge Luiz Queiroz). MT. 2019.
É muito impactante ver o que uma equipe composta por pessoas tão jovens e com tão poucos recursos é capaz de produzir, desde que se tenha esforço e determinação. Interessante a troca e compartilhamento das experiências da equipe, pois assim pude saber que, mesmo se tratando de um curta, o processo de produção e principalmente de finalização foi de mais de um ano, até que a obra pudesse enfim ser exibida.
“Seis dias depois do fim” apresenta um cenário político-ambiental conturbado, que dialoga com a ideia de distopia, onde as pessoas veem seus instintos mais primários aflorados devido à falta de água potável e alimentos. Neste contexto um grupo de jovens tenta sobreviver. O curta é um alerta a respeito da questão do uso de agrotóxicos, em especial em nosso estado, onde o agro é pop. Ao mesmo tempo que é um alento, para quem deseja produzir audiovisual de qualidade com parcos recursos, num estado em que a cultura e as artes são hostilizadas quase o tempo todo e nunca chega a ser pop.
Tanto a fotografia, nos momentos de luz saturada, quanto alguns elementos do argumento, como a busca dos personagens por um lugar seguro para ficar, me remeteram a “Ensaio sobre a cegueira” (Fernando Meirelles, 2008). O fato inusitado, ou pelo menos incomum, é o desencadeamento de ações animalescas a partir do território da universidade, de onde paradoxalmente se esperaria o culto a razão, ou o mínimo atitudes com o mínimo de sensatez.
Os quatro personagens que vemos em cena são universitários e através deles vários subtemas são apresentados, tais como: a questão de gênero e sexualidade; a depressão; o isolamento dos conectados; a solidariedade; a fome e escassez de recursos sobretudo da água, bem como a individualidade e o instinto animal, ainda presente no ser humano, quando se vê em situações limites.
Os atores contribuem muito para a dinâmica da produção, Marcella Gaioto interpreta a apática Tamires, super conectada ao celular, mas praticamente um “zumbi” na vida real, que só sai de sua letargia para contribuir com o desenrolar final da história. Sua total esquiva gera incômodo e até certo suspense, pois parece que a qualquer momento ela sairá de seu transe para atacar os outros personagens, ou os atrapalhará em caso de fuga. Caio Ribeiro dá vida a Leo, o líder sensato do grupo, que tenta conduzir os demais para a salvação, sua postura dá segurança e uma certa tranquilidade, em meio ao caos construído pela narrativa, no entanto a reviravolta ao final da trama pode alterar essa perspectiva. Douglas Peron faz Italo, jovem sonhador e otimista do grupo, que tenta conciliar todos os pontos de vista e pensa nos demais integrantes, o personagem muito bem construído é o responsável pelo momento mais comovente da obra. Enquanto isso Jonathan Nery vive Emílio, que, de algum modo pode ser considerado o antagonista, pois desde o início é o que diverge das posturas dos demais, sendo o mais individualista e pessimista do grupo, suas atitudes se assemelham aos vilões externos, que tememos sem ver e seu modo de falar identifica a obra com o local de produção.
A trilha sonora original é instigante e cumpre o propósito de incomodar e causar aflição no espectador, desde o início. Valeu a pena as incontáveis horas dedicadas à sua finalização.
Como não poderia deixar de ser, numa distopia, o comovente e triste desenrolar da trama, a meu ver, apresenta a infeliz constatação de que “o mundo é dos espertos” ou “bonzinho só se lasca”. Entretanto, isso condiz, em muito, com a realidade na qual estamos imersos atualmente. Quem sabe a ficção colabore para nos dar um choque e assim pensemos melhor em nossas atitudes e construamos uma nova e melhor realidade.