Coluna “Ubuntu” (29.02.20)
Na coluna mensal “Ubuntu” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Maria Ferreira escreve ensaios sobre Literatura Negra, buscando evidenciar aspectos de livros escritos por autores contemporâneos ou clássicos. O título da coluna faz menção ao significado da filosofia africana que diz “Eu sou porque nós somos”, uma lembrança de que as atuais conquistas por espaço e reconhecimento são frutos de uma luta e reivindicações de quem veio antes, que, portanto, devemos honrar quem abriu os caminhos que hoje pisamos e tenhamos consciência de que também estamos abrindo caminhamos na medida em que caminhamos. Uma lembrança de que a conquista de um indivíduo, é, na verdade, a conquista de um grupo.
Maria Ferreira é uma baiana que mora em São Paulo. Graduada em Letras-Espanhol pela UNIFESP. Desde 2013 administra o blog literário Impressões de Maria, no qual dá destaque para a Literatura Negra, fazendo um recorte de raça e gênero. É uma das autoras do livro Vozes Negras (Se Liga Editorial, 2019). Além de poemas, também está escrevendo seu primeiro romance.
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O olhar sobre o outro: uma breve análise do romance Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Ana Maria Gonçalves é uma escritora brasileira, mineira, que estreou no universo literário de forma independente com sua obra Ao lado e à margem do sentes por mim (2000). Alcançou reconhecimento ao publicar Um defeito de cor (2006), pela editora Record, livro de 952 páginas, que levou quase quatro anos para ser escrito em decorrência das pesquisas que a autora precisou fazer para fundamentá-lo, e foi ganhador do Prêmio Casa de Las Américas no mesmo ano da publicação.
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, é protagonizado e narrado em primeira pessoa por Kehinde, uma mulher negra que foi sequestrada em África, no Benim, para ser vendida como escrava no Brasil ainda criança. Kehinde, em sua condição de escravizada, é uma personagem que transita por diversos espaços, desde a senzala à casa grande, fazendas e cidades. A primeira cidade com a qual a protagonista tem contato é São Salvador, que lhe chamou atenção pelo que tem de diferente de sua terra natal e também pelo que tem de comum. Assim, o romance é situado no século XIX, período em que a sociedade estava estruturada com base na escravização de povos africanos.
O livro permite conhecer a dinâmica de funcionamento da estrutura escravocrata brasileira, uma vez que a narradora expõe com riqueza de detalhes suas vivências pessoais e acontecimentos históricos da época, principalmente no âmbito político.
Ao optar por Kehinde como narradora, Ana Maria Gonçalves rompe com os estereótipos que colocam a pessoa negra em posição subalterna pois dá à personagem a oportunidade de contar sua própria história e oferece ao leitor uma outra visão sobre os acontecimentos narrados, a visão de quem foi oprimido, não a do opressor. Por isso, a existência de um livro no qual a narradora é uma mulher que foi posta na posição de escravizada, contando sua própria história, narrando os acontecimentos por seu ponto de vista, é um marco porque mostra que “grupos subalternos – colonizados- não têm sido nem vítimas passivas nem tampouco cúmplices voluntárias/os da dominação” (KILOMBA, 2019, p. 49), como podemos confirmar ao notarmos que a protagonista não é uma pessoa que aceita passivamente seu destino de escravizada, tendo participado de uma das maiores insurgências, que foi a Revolta dos Malês. Então o sujeito escravizado, que normalmente é posto à margem da História oficial, se põe como o centro, ressignificando o conceito de margem/centro, como exposto por Grada Kilomba citando bell hooks: “A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência” (KILOMBA, 2019, p. 68).
Um dos principais temas abordados no livro, naturalmente, é a escravidão no Brasil. A partir disso, esta análise terá como objetivo explicitar as relações entre brancos e negros nessa sociedade escravocrata brasileira do século XIX, procurando evidenciar o modo como os brancos enxergavam os negros escravizados.
Em Um defeito de cor, através da narração de Kehinde, é possível perceber o quanto os olhares dos brancos sobre os negros evidenciam a visão e os sentimentos de menosprezo, ódio e posse. Esses olhares são evidenciados em três situações específicas: quando a sinhazinha Maria Clara, de quem a protagonista é dama de companhia, faz com que a Kehinde se sinta feia; quando a sinhá, impossibilitada de engravidar, tomada de ódio, arranca os olhos de uma escravizada que estava grávida de seu senhor; e a terceira situação é quando o mesmo senhor estupra a protagonista e castra o pretendente desta. Esses olhares fazem com que, a princípio, Kehinde também se veja pelo olhar do branco. Há uma cena bastante emblemática, que é a cena do espelho, quando ela vê pela primeira vez este objeto e ainda não sabia para o que servia:
Desde que me olhei nele pela primeira vez, não consegui passar um único dia sem voltar a fazê-lo sempre que surgia uma oportunidade. A Esméria parou na frente dele e me chamou, disse para eu fechar os olhos e imaginar como eu era, com o que me parecia, e depois podia abrir os olhos e o espelho me diria se o que eu tinha imaginado era verdade ou mentira. Eu sabia que tinha a pele escura e o cabelo duro e escuro, mas me imaginava parecida com a sinhazinha (GONÇALVES, 2018, p. 85).
Nesta passagem, quando solicitada para que imaginasse como era, Kehinde se imagina como branca, afinal, não quer ser a figura feia que sua dona diz que ela é. Assim, percebemos que o ideal de beleza era um ideal branco e impossibilitada de atingir esse ideal, sua reação é fazer o movimento contrário: transformar o que era considerado bonito em feio:
Eu era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram, e evitei chegar perto da sinhazinha. Quando era inevitável, fazia o possível para deixá-la feia também, principalmente em relação aos penteados. Pegava em seus cabelos com as mãos sujas de banha ou de terra e inventava maneiras estranhas de prendê-los (GONÇALVES, 2018, p. 85).
Mesmo com as diferenças iniciais, Kehinde e a sinhazinha Maria Clara acabam se tornando amigas e quando esta última é enviada para um convento, deixa um presente para Kehinde: “Ela me deixou um embrulho de presente e disse que eu só podia abri-lo no dia do meu aniversário, e que mesmo sendo preta eu podia considerá-la minha amiga” (GONÇALVES, 2018, p. 103) (grifos nossos). Assim, percebemos que a amizade entre uma pessoa negra e uma branca só pode se dá nos termos de “apesar de”, o que vai de encontro ao que Fanon relata: “Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor… Aqui ou ali, sou prisioneiro do círculo infernal” (FANON, 2008, p. 109). Para que haja cordialidade ou respeito do branco para com o negro, é sempre apesar de sua cor.
O julgamento dos brancos em relação aos negros se dava a partir do momento em que eles viam a cor da pele e depois desta, as roupas. Por isso, visando alcançar uma maior proximidade com os brancos, um caráter distintivo entre os próprios negros, era o modo de se vestir, como vemos na descrição dos primeiros momentos que Kehinde chega na casa dos seus senhores e ainda está conhecendo e entendendo a dinâmica de funcionamento daquele espaço: “O preto se chamava Sebastião e era quase branco no seu jeito de andar e de falar, tendo até os pés calçados, como também era o caso da Antônia (…), vestida com roupas diferentes das que a Esméria e a Firmina usavam” (GONÇALVES, 2018, p. 75). Há uma distinção entre o modo de vestir dos escravizados. Quem ficava na cozinha se vestia de uma forma e quem servia à mesa se vestia de outra, muito melhor porque seriam vistos por eventuais visitas e os senhores queriam passar uma boa imagem de si. Ao falar sobre as diferenças entre os pretos da senzala grande e da senzala pequena, Kehinde pontua: “De fato, eu já tinha percebido que a nossa vida era melhor mesmo, apesar do pouco contato com os outros (…). Segundo a Esméria, era para que não pegássemos de novo os vícios selvagens dos pretos, e assim servirmos melhor aos brancos” (GONÇALVES, 2018, p. 81) (grifos nossos). Com isso, percebemos que os brancos viam os pretos como selvagens, ou seja, não eram vistos como seres humanos.
Uma das personagens, que é a sinhá Ana Felipa, uma das donas de Kehinde, tem um problema que é não conseguir engravidar, apesar de querer muito. Ela ia até o terceiro mês de gestação, mas sempre acabava perdendo a criança. Por conta disso, a sinhá sentia muito ódio que as escravizadas engravidassem de seu marido e seus filhos nascessem enquanto o mesmo não acontecia com ela. Mas o que a sinhá não percebia era que a questão principal não era a gravidez, mas o ato que levava à gravidez: o estupro das mulheres negras por seu senhor branco. Em uma destas ocasiões, depois de perder outro filho, tomada de ódio, a sinhá Ana Felipa cega com uma faca uma de suas escravizadas chamada Verenciana porque estava grávida de seu senhor. Com as próprias mãos, ela arranca os dois olhos da mulher. Sobre esse sentimento de ódio irracional, Fanon pontua:
O ódio não é dado, deve ser conquistado a cada instante, tem de ser elevado ao ser em conflito com complexos de culpa mais ou menos conscientes. O ódio pede para existir e aquele que odeia deve manifestar esse ódio através de atos, de um comportamento adequado; em certo sentido, deve tornar-se ódio (FANON, 2008, p. 61).
A sinhá manifesta seu ódio ferindo com as próprias mãos a escravizada Verenciana porque sobre seu olhar, a mulher representava o que a sinhá mais odiava: ela, uma mulher branca, não poder dar filhos ao seu marido, enquanto as negras escravizadas podiam, independente de suas vontades. Depois do que fez, a sinhá, “Como se nada tivesse acontecido (…), entrou em casa e se trancou no quarto” (GONÇALVES, 2018, p. 107). Com isso, fica evidente a naturalização das práticas de ódio contra os negros. Os brancos se sentiam nesse direito e não sentiam culpa por isso, afinal, entendiam que tinham o direito de fazerem o que quisessem com suas “mercadorias”, agindo sobre elas com um olhar de posse.
Kehinde, ainda criança, passou a ser assediada por seu senhor, que mesmo depois do que sua esposa fizera com a escravizada Verenciana, não mudou de comportamento e continuou assediando as mulheres negras escravizadas porque “(…) era bastante normal que os senhores se deitassem com as escravas e as senhoras aceitassem sem reclamar” (GONÇALVES, 2018, p. 153). Ela tinha apenas doze anos quando seu senhor quis garantir que fosse o primeiro a lhe tirar a virgindade. Antes disso, ela estava se relacionando com outro escravizado chamado Lourenço e os dois, percebendo as intenções do senhor, planejavam fugir juntos, mas seu dono foi mais rápido. Para proteger sua amada, Lourenço enfrentou o senhor e depois fugiu sozinho, mas foi capturado e sofreu castigos muito fortes porque o discurso do homem branco era um discurso de posse, uma vez que entendia que se ele tinha pago, o corpo das mulheres negras lhe pertencia: “(…) ao entrar no quarto e dizer que a virgindade das pretas que ele comprava pertencia a ele, e que não seria um preto sujo qualquer metido a valentão que iria privá-lo desse direito, que este tipo de preto ele bem sabia o tratamento de quer era merecedor” (GONÇALVES, 2018, p. 170). Como castigo, colocaram um colar de ferro ao redor do pescoço de Lourenço e ele foi obrigado a assistir o senhor violentando Kehinde, e por ter chorado, foi ele mesmo violentado pelo senhor e em seguida teve seu membro capado:
A última coisa que ouvi antes de sumir de mim foi o sinhô comentando que aquilo não era nada, que o Lourenço ia sobreviver e que no tempo do pai dele era muito comum ter escravos capados, que os próprios pretos faziam isso em África, onde alguns homens eram capados para que ficassem mais dóceis e delicados para as tarefas de casa (GONÇALVES, 2018, p. 172).
Neste episódio de dor e sofrimento, Kehinde pontua que o senhor José Carlos “(…) parecia sentir mais prazer à medida que nos causava dor” (GONÇALVES, 2018, p. 172), num comportamento totalmente sádico.
Com o que foi exposto acima, entendemos que no livro Um defeito de cor, o olhar dos brancos sobre os negros é direcionado de três formas: menosprezando, odiando e afirmando a posse, reiterando a colocação do negro como objeto e não reconhecendo sua humanidade. Os brancos viam os negros como selvagens, os tratavam como animais, sentiam-se no direito de usar seus corpos como bem entendessem, assumindo ares de deuses, que controla a vida do outro. Diante de tudo que foi apontado, fica o questionamento: quem é realmente o humano e o selvagem?
Percebemos que os brancos, sejam eles criança, mulher ou homem, reproduzem práticas opressoras e que, em um primeiro momento, o negro, no caso Kehinde, ao querer se ver como a sinhazinha branca, estava querendo fazer parte da classe de quem oprime, não de quem é oprimido. Sobre esse desejo do negro querer ser branco, Fanon diz:
Para ele só existe uma parte de saída, que dá no mundo branco. Donde a preocupação permanente em atrair a atenção do branco, esse desejo de ser poderoso como o branco, essa vontade determinada de adquirir as propriedades de revestimento, isto é, parte do ser e do ter que entra na constituição de um ego (FANON, 2008, p. 60).
Por outro lado, ter uma protagonista que, enquanto sujeito social marginalizado, é narradora de sua própria história é algo que incentiva as outras pessoas negras a contarem suas histórias e praticarem mais a alteridade ao entrar em contato com uma narrativa que “a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos” (KILOMBA, 2019, p. 68).
Um defeito de cor, portanto, é um livro que permite que se possa ter um olhar renovado sobre a cultura brasileira e os acontecimentos históricos, uma vez que normalmente a História é contada de um ponto de vista hegemônico. Ter essa inversão de papeis ajuda muito na percepção de que não se deve ter visões únicas sobre uma realidade.
Referências bibliográficas
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 17a ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019.