Coluna “Ubuntu” (30.01.20)
Na coluna mensal “Ubuntu” ( clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Maria Ferreira escreve ensaios sobre Literatura Negra, buscando evidenciar aspectos de livros escritos por autores contemporâneos ou clássicos. O título da coluna faz menção ao significado da filosofia africana que diz “Eu sou porque nós somos”, uma lembrança de que as atuais conquistas por espaço e reconhecimento são frutos de uma luta e reivindicações de quem veio antes, que, portanto, devemos honrar quem abriu os caminhos que hoje pisamos e tenhamos consciência de que também estamos abrindo caminhamos na medida em que caminhamos. Uma lembrança de que a conquista de um indivíduo, é, na verdade, a conquista de um grupo.
Maria Ferreira é uma baiana que mora em São Paulo. Graduada em Letras-Espanhol pela UNIFESP. Desde 2013 administra o blog literário Impressões de Maria, no qual dá destaque para a Literatura Negra, fazendo um recorte de raça e gênero. É uma das autoras do livro Vozes Negras (Se Liga Editorial, 2019). Além de poemas, também está escrevendo seu primeiro romance.
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Maria Firmina dos Reis: romancista precursora do Brasil
Desde o século XIX, com o despertar da prosa de ficção, o romance fixou-se como um gênero de prestígio. Escritores renomados foram autores de romances. Podemos citar aqui, no caso do Brasil, nomes como José de Alencar e Machado de Assis e normalmente quando pensamos em romancistas do século XIX surgem muitos nomes de autores e poucos de autoras, mas Maria Firmina dos Reis é considerada a primeira romancista brasileira: uma mulher negra que por muito tempo ficou à margem do que é considerado cânone, mas que tem sido cada vez mais redescoberta.
O texto literário não pode ser tomado como um documento historiográfico porque obedece e baseia-se em outras regras para sua composição. Mas a literatura não está dissociada do seu contexto de produção e circulação, o que faz com que represente a realidade em que foi produzida e na qual está inserida. Assim, no Brasil do século XIX, na literatura oitocentista, o tema da escravidão é abordado nas obras literárias, mas muitas vezes de um modo velado e sem problematizá-la conscientemente.
Maria Firmina dos Reis, por meio da publicação do seu romance Úrsula (1859), entrega uma representação literária da escravidão. O livro é fruto de sua época e por isso faz uso de uma linguagem totalmente influenciada pelo Romantismo, com características como exaltação da beleza, sofrimento por amor e vastas descrições em uma narrativa linear, em terceira pessoa. O que move esse romance é uma história de amor trágica, mas ao mesmo tempo, o livro não se furta à oportunidade de expor uma crítica ao Brasil daquela época, sustentado por um sistema escravista e patriarcal.
Úrsula, que dá nome título do livro, é a protagonista, uma jovem branca, sem muitos recursos financeiros, que vive com sua mãe acamada e dois escravizados: Túlio e Susana. A história tem início com um jovem chamado Tancredo cavalgando por campos desconhecidos, quando cai no cavalo e se machuca gravemente, até que é encontrado por Túlio, que o ajuda e o leva para a casa de sua dona, Luísa B., Mãe de Úrsula. Lá Tancredo recebe os cuidados que precisa até melhorar completamente e poder partir. Enquanto os dias passam, vai nascendo um sentimento de paixão entre Tancredo e Úrsula e grato por ter sido salvo, compra a carta de alforria do Túlio e os dois se tornam amigos.
O antagonista romance é o Comendador Fernando P., um homem completamente desumano, a verdadeira personificação da maldade e responsável pelos piores acontecimentos do livro. Ele se apaixona por Úrsula, mas quando descobre que ela é apaixonada por Tancredo, faz de tudo para que os dois não fiquem juntos.
Algo que chama bastante atenção neste romance é o fato de que a personagem Susana, que é a escravizada da família de Úrsula, ganha voz na narrativa para contar sobre como ela foi sequestrada em África e trazida para o Brasil nas piores condições possíveis. Um escravizado ter voz para contar sua própria história de vida era um fato inédito até então.
A pesquisadora Fernanda Rodrigues Miranda afirma que este romance tem uma “dicção interseccional” porque as personagens mulheres brancas são oprimidas, mas ao mesmo tempo são senhoras de escravizados e isso faz com que haja uma compreensão daquela sociedade de uma forma ampla. Assim, Úrsula tem seu valor por seu caráter pioneiro de livro abolicionista, por expor com riqueza de detalhes as agruras da escravidão, por representar os personagens negros escravizados com humanidade e caracterizados com qualidades e sentimentos. A pesquisadora também afirma que “Maria Firmina dos Reis é romancista precursora do Brasil” e faz essa afirmação levando em conta a dupla interpretação que essa frase pode ter: a autora como a primeira romancista brasileira e também como primeira a passar uma imagem de nação por meio de seu romance.
Maria Firmina dos Reis nasceu em 1822, na Ilha de São Luís, no Maranhão. Foi filha de mãe branca e pai negro e não se tem registros de sua imagem verdadeira, mas por ser filha de pai negro, acredita-se que ela foi negra. Dentre as atividades às quais dedicou-se, está o magistério, tendo sido professora de primeiras letras entre 1847 e 1881, na cidade de Guimarães, tendo, inclusive, fundado uma sala mista, que não teve boa recepção pela sociedade da época. Além disso, também foi primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão.
Em 1859 publicou o romance Úrsula, sob o pseudônimo Uma Maranhense, o que fez dela uma das primeiras romancistas brasileiras, seguido de Gupeva, em 1861 romance de filiação indianista, em 1887 publicou “A Escrava”, conto abolicionista, além de ter poemas publicados em jornais da época. Também atuou no campo da música, compôs canções clássicas e populares. É de sua autoria o “Hino à Libertação dos Escravos” (1888).
O livro ficou esquecido por mais de um século, e a autora passou por um processo de exclusão e esquecimento, até que foi recuperado em 1962 pelo historiador Horácio de Almeida, que encontrou uma edição do livro em um sebo no Rio de Janeiro e publicou uma edição fac-similar em 1975.
Úrsula é um romance fundamental para entender a composição do Brasil. Pode ser entendido como um romance de fundação porque explica o país, expõe o quanto somos uma nação fundada na violência, contra negros, mulheres e que por isso, precisa ser lido e discutido cada vez mais, até que Maria Firmina dos Reis seja um nome amplamente conhecido.
Referências bibliográficas
MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. A roda como forma de ler romancistas negras brasileiras. Suplemento Pernambuco, Pernambuco. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/77-capa/2289-a-roda-como-forma-de-ler-romancistas-negras-brasileiras.html>. Acesso em: 13 jan. 2020.
MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Corpo de Romances de Autoras Negras Brasileiras (1859-2006): Posse da História e Colonialidade Nacional Confrontada. 2019, 251 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.
REIS, Maria Firmina. Úrsula. Porto Alegre: Editora Taverna, 2018.