Controle e dominação dos corpos femininos em Nojo, de Divanize Carbonieri – Por Marli Walker
Marli Walker nasceu em Santa Catarina, de onde saiu aos dezoito anos para o sertão de Mato Grosso, região em que viveu por mais de vinte anos. Hoje reside em Cuiabá, onde escreve e leciona no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). A autora publicou os livros de poemas Pó de serra (2006/2017); Águas de encantação (2009), selecionado pelo edital da prefeitura de Sinop; Apesar do amor (2016), contemplado pelo edital do MEC para o PNLD/2018 e pela Prefeitura de São Paulo (2019); Jardim de ossos, premiado em 2020 pelo edital da Biblioteca Estevão de Mendonça – MT; e o romance Coração Madeira (2020).
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Controle e dominação dos corpos femininos em Nojo, de Divanize Carbonieri
Divanize Carbonieri surpreende o meio literário e os leitores com o seu mais novo livro, Nojo, lançado em 2020 pela Carlini & Caniato Editorial, desde então divulgado e comercializado pela própria autora nas redes sociais, onde pipocam depoimentos sobre a nova obra enviados por leitores das mais variadas idades e formações. Em meio à pandemia da Covid-19, entre os anúncios de Nojo e de outros livros da escritora, dentre os quais o premiado livro de contos Passagem estreita (2019), finalista do Prêmio Jabuti, os leitores externam impressões geralmente centradas no sentimento de repulsa e evidente flagrante do leitor sobre o julgamento de terceiros e as suas próprias posições, lugares incômodos, constrangimentos e afetações hostis frente ao tema abordado ao longo das 89 páginas de Nojo.
O leitor se vê jogado em meio a falas sucessivas, com uma voz saindo da anterior e entrando na seguinte, sem ponto, sem vírgula ou parágrafo. Todas as falas da narrativa parecem seguir um processo de justaposição, pois não há perda ou alteração de sentido, apenas uma sequência de narrativas em que as vozes falam daquilo que consideram abjeto no corpo da mulher, da raiz do cabelo ao dedão do pé.
Entretanto, o leitor mais atento notará que o incômodo inicial com a linguagem é, de todos os incômodos provocados pela obra, o menor. O nojo de Nojo não é produzido somente pela subversão da norma linguística, mas sobretudo pela subversão de uma certa ordem de como se pode ou não escrever para representar o que quer seja, no caso, o que é considerado desordem no corpo da mulher. Gramática e temática são desviadas da normatividade padrão considerada culta e bela para reforçar a mensagem de Carbonieri: o controle e a dominação de corpos femininos praticados pela hoteronormatividade continuam delimitando a voz, o espaço e o tempo da mulher na sociedade.
Há, portanto, uma dupla subversão que se dá, primeiro, pela não adequação da linguagem à gramática normativa e, segundo, pelas imagens que a narrativa desnuda sobre os corpos em desalinho com o belo estético, com o padrão e com a norma construídos culturalmente para medir e perscrutar os corpos femininos, reveladas pelas vozes em profusão justaposta. Temos, assim, na mesma proporção, forma e conteúdo em desalinho com a normatividade, com o padrão e a ordem.
Repito: Divanize Carbonieri arquiteta uma dupla desconstrução por meio dos dois aspectos constituintes do texto literário, a forma e o conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outro modo: a linguagem e o corpo da mulher são, respectivamente, a forma e o conteúdo literários convergindo extraordinariamente para provocar o nojo, o estranhamento, o espanto, a repulsa. A estrutura narrativa se organiza em torno desses dois eixos, conduzidos pela fala incessante de mulheres-personagens, falas estas que se justapõem umas às outras no decorrer da narrativa sem prejuízo de nenhuma. Estamos diante de mulheres que falam sem cessar, e aí reside, ao meu ver, o ponto chave de boa parte do nojo atribuído às mulheres e aos corpos das mulheres, desde há muito. As mulheres falam. E as mulheres falam sem cessar. Não bastasse, em Nojo, as mulheres falam de seus e de outros corpos femininos representados como nojentos por figurarem fora do padrão e da estética impostos como a norma. As narradoras em primeira pessoa falam com a propriedade de quem conhece os traumas, vivencia na pele a rejeição social e a autorrejeição, culminando no sentimento repulsivo de nojo. Talvez esse seja um aspecto velado e ainda não percebido por leitores desavisados. A fala da mulher, a voz da mulher, por si só, caracteriza uma afronta ao status quo patriarcal. Mas eis que Nojo chega em forma de múltiplas vozes que falam sem cessar do início ao fim da narrativa e escancaram de uma só vez a indocilidade e a ineficiência do sistema cerceador da voz e do corpo da mulher.
A leitura de Nojo me remeteu de imediato ao texto “Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino” (Editora Mulheres, 2007), de Elódia Xavier, em que a autora traz uma espécie de tipologia do corpo da mulher, no qual revela a representação do corpo como espaço de inscrições culturais, políticas e sociais. Partindo da categorização de Xavier, temos tradicionalmente representados na literatura dez tipos distintos de corpos femininos: corpo invisível, corpo subalterno, corpo disciplinado, corpo imobilizado, corpo envelhecido, corpo refletido, corpo violento, corpo degradado, corpo erotizado e corpo liberado. A categorização é amparada em fatores de concretude histórica, não apenas natural/biológica, fator que ressalta a noção oposta ao que se considera tradicionalmente, pressupondo que a representação desses corpos é também a representação das práticas sociais que rodeiam esses corpos. Caberiam aqui relações de análise imediatas a Pierre Bourdieu, A dominação masculina, e de Michel Foucault, Vigiar e punir, uma vez que os dois textos são teorias consagradas sobre o tema da dominação, vigilância e punição dos corpos, portanto, bases consideradas modelos basilares da sociedade contemporânea.
Pois bem, das dez categorias mapeadas por Elódia em romances da literatura brasileira, podemos reconhecer, em Nojo, de forma mais destacada, corpos imobilizados, corpos envelhecidos, corpos degradados e corpos liberados. Talvez o último modelo, corpos liberados, seja o que mais causa nojo, pois ele representa justamente o corpo indócil, aquele que não se submete à norma, ao padrão social estabelecido como adequado, seja ele imobilizado, envelhecido ou degradado de alguma forma. No caso de Nojo, o imobilismo, verá o leitor, é causado pelo sentimento ou percepção de que o corpo está em desalinho com o modelo socialmente aceito e, por consequência, as falas confirmam o efeito que o descompasso com esse padrão produz: não usar biquíni, submeter-se a procedimentos estéticos invasivos, arriscados e caros, fechar-se para os relacionamentos e por aí afora. Na melhor das hipóteses, os corpos liberados, exaustivamente julgados e criticados por colocarem à mostra aquilo que é considerado nojento, são também massacrados por destoarem da norma e mesmo assim se mostrarem aos olhos de quem não deseja vê-los.
Enfim, não basta aos corpos femininos a emancipação intelectual e financeira, pois há um fator considerado igualmente preponderante para o desempenho satisfatório da mulher: ela deve ser bela. A beleza, esse mito construído sob alicerces patriarcais sólidos e por isso secular, torna-se, talvez, o último reduto para o exercício depreciativo da imagem feminina, tanto por ela mesma, quanto da engrenagem social pautada em normas e padrões estabelecidos em benefício de quem dita as regras. É preciso lembrar que a autodepreciação surge em função da não adequação à norma preestabelecida. Carbonieri quebra todas elas, regras e normas, de cabo a rabo, da linguagem ao tema, da forma ao conteúdo, realizando irretocavelmente a façanha de burlar a norma em toda sua extensão patriarcal. Ela escreve, ela cria, ela fala, e ela mostra as feridas expostas de uma sociedade coercitava e cruel.
Finalizo alertando o leitor que a narrativa não se resume ao nojo das representações dos corpos nem ao incômodo que a linguagem possa causar nas páginas iniciais. Este Nojo vai muito além. Ele deita suas raízes na antiga prática de silenciar, emudecer, tolher, constranger, limitar, acuar, diminuir e neutralizar a mulher. Se não é mais possível fazer isso por meio de mecanismos relacionados ao controle do intelecto e do campo de trabalho, será pela via do corpo. É difícil engolir. O nojo vem do fundo e revira o estômago, mas essa é a representação tristíssima de uma sociedade que exercita ao máximo seu poder de subjugação dos corpos femininos e de tudo o que possa representar a emancipação plena da mulher.
CARBONIERI, Divanize. Nojo. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial, 2020.
XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.
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Trecho do livro Nojo (contos, 2020)
[…] mas é preciso ter muita coragem uma bunda desse tamanho e você quer usar shortinho ainda é pra acabar devia é pôr alguma coisa pra esconder isso daí sai na rua e fica todo mundo olhando pra tua bunda não pense que é porque eles acha bonito é porque é impressionante mesmo você vai andando e aquilo vai tremendo parece uma geleia coisa feia dos inferno eu que sou mãe já não aguento olhar imagine quem nem conhece você tinha é que ter mais pena das pessoa elas não é obrigada a ver esse espetáculo desagradável além de não querer emagrecer ainda quer obrigar os outro a ver tuas banha coisa triste viu pensa que é bonito acho que nem a gisele bündchen ficava bonita numa tirinha de pano dessa não sei quem enfiou isso na tua cabeça que moda é essa só se for moda de ficar medonha não tem sentido isso braço de mulher devia servir pra outra coisa tipo voar quem sabe não tô brincando sei que voar não dá mas devia servir pra outra coisa que não fosse só pra medir o valor dela uma mulher de braço tatuado vale menos uma mulher de braço gordo vale menos uma mulher de braço flácido vale menos uma mulher de braço manchado vale menos uma mulher sem braço então deve valer é nada seria bom se servisse pra outra coisa quem sabe pra gente construir alguma coisa abraçar alguém pegar um copo de água na geladeira que seja devia ser pra isso que eles existe mas não é é uma coisa bem mais idiota só serve pra deixar ela quebrada pra sempre tipo asas quebrada uma mulher já nasce com as asa quebrada e os braço é o que lembra ela disso a vida inteira […]