Copa do Mundo – “Era Uma Vez em Tóquio” (Japão) – Por Ariadne Marinho
Era Uma Vez em Tóquio. Direção: Yasujiro Ozu. País de Origem: Japão, 1953.
Kyoko: A vida não é decepcionante?
Noriko [sorrindo]: Sim, ela é.
O cineasta nipônico Yasujiro Ozu é alcunhado de “o diretor mais japonês dos japoneses” devido à singularidade de seu estilo. Seus filmes mesclam elementos que transportam o espectador para a película, elaborando uma narrativa simétrica de “esculpir o tempo”, ao retratar histórias de pessoas comuns, acontecimentos e conflitos referentes à moralidade, convívio familiar e cultura nipônica. Ozu é consagrado por sua sensibilidade de produzir em cada cena frame de fotografias. Exatamente pela perspectiva da câmera sempre posicionada próximo ao tatame, numa clara alusão ao modo de sentar de sua cultura, demostrando sua característica marcante, a de fabricar o vazio e uma leveza inigualável. Além dos cortes frontais com a lente de 50 milímetros no meio dos diálogos lacônicos extraído do cotidiano, Ozu nos faz estar presentes nas conversas entre os personagens, de forma devastadora e admirável.
Entretanto, a habilidade mais ilustre do cineasta seja o vazio presente de uma cena para outra, uma projeção fotográfica de sua obra de arte de delicadeza brusca em suas transições. Não se trata de uma simples ambientalização, está para além disso, são as descrições visuais do tempo sendo esculpido, a montagem sendo estabelecida.
Umas das obras primas de Ozu Era uma vez em Tóquio (1953) mostra o Japão pós-Guerra durante a década de 1950. Um casal de idosos, Tomi (Chieko Higashiyama) e Shukichi (Chishû Ryû), viaja a Tóquio, onde pretende visitar os filhos e os netos que há anos não veem. Porém, todos estão muitos indiferentes e não têm tempo para dar-lhes atenção. Neste filme, Ozu é atemporal, vai ao encontro das discussões que começaram a aclarar-se nos anos 2000 na obra A solidão dos moribundos (2001), de Norbert Elias, que expõe com sutileza o envelhecer na modernidade, como também alguns conceitos e expressões universais como o de Estado, liberalismo, neoliberalismo, a nova arte de governar à vida, entre outras. Ozu no cinema e Elias na sociologia delineiam argutamente o burilar dos acontecimentos ou fatos filosóficos, sociais e históricos, quase impossíveis de classificação. Sob o prisma do questionamento e da crítica à forma, apresentam como todo o processo político de governabilidade da vida nasce e se desenvolve. Ambos apontam como se deu tais mudanças e o impacto que alcançaram, além de formularem projeções de como um novo significado altera todo um estilo de vida em sociedade.
A questão dos idosos é um desafio social, pois os mesmos não escapam de um drama, já que o isolamento é uma forma de segregá-los e excluí-los do convívio familiar e social, afastando-os de forma consciente e respaldada pela normativa que legitima tais ações. Segundo Elias, “o isolamento tácito dos velhos e dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo que lhe dava sentido e segurança” (ELIAS, 2001, p. 8). Ao privá-los, utilizando o discurso que na velhice os indivíduos tornam-se sujeitos solipsistas, os poentes defensores deste pensamento propõem conceitos morais de pseudo-cuidado que permitem a sua segregação e o confinamento em asilos, sejam públicos, sejam privados. Para Elias, a motivação pode ser outra, “A fragilidade dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vivos. Sua decadência as isola” (ELIAS, 2001, p. 8).
Ozu retrata o envelhecer na modernidade como uma deterioração do corpo, do ser “o constrangimento social, o véu de desconforto que frequentemente cerca a esfera da morte” (ELIAS, 2001, p. 77). Sugeridos a todo instante na trama, a penúria, a solidão, a memória, o conflito da estadia do casal de idoso na capital japonesa marcam a passagem deles por Tóquio. Nada ocorre como eles esperavam. Os filhos não têm interesse e nem o comprometimento de ficar com os pais, por estarem envolvidos com suas próprias ocupações. Aqui, a ruptura, o abandono entre a modernidade e o tradicional. A exceção é Noriko, a viúva de seu filho mais novo já falecido, interpretada pela sua atriz preferida Setsuko Hara. Ozu confirma a característica de seu estilo em seus personagens que “nunca ambicionam felicidades”. Após alguns dias, Tomi e Shukichi são enviados para um centro termal em Atami, perto do mar. Essa é a alternativa encontrada pelos filhos mais velhos para não terem que se preocupar com os pais e evitarem maiores gastos. A estadia no spa, no entanto, é desgastante para o casal, devido aos outros hóspedes barulhentos.
Ao retornar a Tóquio os idosos são confrontados pela filha por causa do regresso “tão imediato e inoportuno”, mais uma vez os pais ficam desamparados e na rua. Tomi acaba por encontrar abrigo na casa de Noriko – que cuida e ampara com todo carinho e obrigação, conforme à tradição japonesa. Enquanto Shukishi, tão desapontado, passa à noite se embriagando com dois amigos. No meio da madrugada, é encaminhado por um policial a residência da filha, que outra vez demonstra seu desprezo pelo velho pai.
O casal resolve volta para casa. Quando Tomi fica doente, os filhos vão visitá-la junto com Noriko, e complexos sentimentos são revelados entre eles. Após o velório, Shukishi diz a Noriko: “A Mãe me contou quão boa você foi pra ela quando ela ficou na sua casa. Ela me disse que foi a noite mais feliz que passou em Tóquio”. Shukishi entrega a filha um relógio, representação do tempo. Era uma Vez em Tóquio é um filme que perdura, absorvendo-nos por muito tempo. Esta obra nos faz refletir sobre a efemeridade da vida, as relações, o tempo e a morte.
Referência:
– ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001
* Ariadne Marinho é graduada e mestre em História. Dedica sua vida ao deus Dionísio e ao leve Tom. Atualmente é uma atenta observadora do cotidiano.