Coração de menino e olhos de velho: “Uma certeza” e “Bênção”
A Ruído Manifesto vai dedicar o dia de hoje a publicar contos e outros textos de seu eterno criador, Rodivaldo Ribeiro, de quem nos despedimos ontem. “Uma certeza” e “Bênção” fazem parte de Essa armadilha, o corpo (Chiado, 2018).
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Uma certeza
Sua mãe costumava dizer-lhe: um número considerável de coisas, talvez as mais importantes, acontecia de modo a imitar a naturalidade do alvorecer – é impossível saber qual lógica obriga à sucessão de alguns atos, ao conhecimento de certas dores.
“Da mesma forma se dá com os dias: não sabemos o que os obstina em sua persistente e monótona teimosia em nascer; ainda assim eles nascem, numa simples e luminosa rotina”.
Lembrava, porém, que a despeito e para o desespero sincero da espécie humana, nossas vidas vêm sendo, há pelo menos um século, fartamente providas de tudo, menos luz.
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Bênção
Madito é aquele cujos olhos não conseguem – ao perceber a alegria – deixar de ver o quanto de dor (sempre nova, mesmo tão antiga) há nos contornos de toda beleza. “Mas não é esse, então, o caminho de tudo? Aproveitar o instante, saber esperar (e entender) que tudo, tudo há de fenecer?”, ela pergunta. “Não, antes o passo que o destino. Melhor é aceitar o amargo ao doce, pois sabor forte não mente nem entorpece, ainda que fira. E muito; e eu prefiro as cicatrizes”, respondi. “Maldito és tu, a amar as coisas com coração de menino, mas a enxergar tudo com embaçados olhos de velho, a ter aceso um peito aberto em brasa viva, mas a respirar e sorver nada além da fumaça tóxica das chamas, com seus pulmões também velhos. E gastos”. Ela não está errada. Jamais esteve.